sábado, dezembro 31, 2005

King Kong

Hollywood, os Óscares, e tudo o que vem atrás disso, é algo que todos os anos, sobretudo por este continente, se costuma criticar, ou mesmo ridicularizar, de vez em quando com argumentos interessantes, muitas vezes sem qualquer ponta de razão. Tal como os Estados Unidos são um grande país, a sua cultura é fascinante, e aí mesmo encontramos esse nome, representativo de tantos anos de cinema, histórias fabulosas, sonhos e aventuras.
Nestes últimos anos, é uma constante falar-se da "crise da indústria" - já não existem espectadores, quanto mais cinéfilos, os filmes vêem-se por números, as pessoas parecem desligar-se da magia do cinema, as histórias são banais, as estrelas sem talento. Hollywood perdeu o charme, e entregou-se à mediocridade de um ambiente "reality TV" - actores que são cantores, vindos de programas de televisão-pacote, clichés banais, um cinema sem cultura.
Alguns destes pontos são, de facto, verdade. Basta ver o domínio total de filmes americanos no circuito comercial português, olhar para eles, e perceber a sua (falta de) qualidade. São exactamente isso - filmes que se olham, e não mais, como televisão. No entanto, para quem conhece bem o cinema americano, as suas raízes, as suas histórias, o seu modo de funcionar, apercebe-se também que a sua indústria funciona talvez da mesma maneira do que há décadas atrás, com o mesmo sensacionalismo, com os mesmos filmes ligeiros ou fracotes, apenas de forma adaptada à evolução inevitável do tempo. E com tantos filmes produzidos por ano, alguns serão inevitavelmente bons - nem todos podem passar daqui a muitos anos nas cinematecas. Mas King Kong de Peter Jackson terá certamente lugar cativo em qualquer arquivo.
Curiosamente, este "rejuvenescimento" teve lugar na Nova Zelândia, país natal desse realizador. Mas tudo o que se vê é Hollywood, em todos os seus melhores aspectos. E daí só poderia sair um filme fantástico - Hollywood em todo o seu empenho e inteligência, renovando cenários e efeitos (uma Nova Iorque dos anos trinta impressionantemente reconstruída, uma autêntica homenagem à cidade) que mesmo digitais (para quem me perceba) são sem dúvida dos mais extraordinários já vistos em cinema, Hollywood em constante auto-citação (jogos temporais com nomes de actores, frases, locais, estúdios, até gritos - cinema e vida em agitação permanente), em constante trabalho, risco, entrelinhas (as que Jack quer que Ann veja) e magia.
Este filme, tal como o cinema, e sobretudo o americano, é mágico. Não só pelas já ditas imagens inacreditáveis, não como efeitos de jogo de vídeo, mas sim dotadas de forte carga psicológica, como também pela sua construção notável, a sua maravilhosa banda sonora (algo tão hollywoodesco e belo), a importância do som na sua essência, e não como palavra (passam-se minutos e minutos sem intromissões de pontas de diálogo irritante, desnecessário, numa clara rendição à imagem, essência do cinema), a gestão quase perfeita da emoção e da coragem (pecando talvez apenas em exageros pontuais de uma ou outra personagem secundária), e sobretudo, pelas duas maiores cenas de acção que o cinema já viu, passadas na Skull Island, entre uma corrida inacreditável de uma série de brontossauros, e uma luta absolutamente impressionante entre King Kong e um número de Tiranossauros, que tentam atacar a sua amada. Não há palavras para descrever.
E palavras é o que o cinema não precisa, tal como Kong, e todas as sequências centrais do filme, aparentemente dividido em três - uma introdução e apresentação de personagens, um capítulo inteiramente reservado à acção (e que acção!) na ilha misteriosa, e uma última parte, passada de novo em Nova Iorque, onde brilha o final em que a Beleza se junta ao Monstro, minutos e minutos de novo sem palavras, só imagem, só cinema.
Volta Hollywood, estás perdoada.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Cenas da Vida

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Cenas da Vida Conjugal de Ingmar Bergman não é cinema, não é televisão, não é teatro, não é fotografia. No entanto, recolhe cada um desses elementos na sua essência. Apesar de ter sido feito para a televisão, estando expressamente dividido em seis diferentes episódios, a sua passagem pelas salas de cinema, assim como Saraband, é inevitável. Para além do nome do seu autor, estão diversos planos totalmente pertencentes ao seu universo e dotados do seu toque único - em cada grande plano de Bergman, para além de um rosto ou de um filme, está o rosto, ou o filme, ou as suas ideias. Em alguns momentos, sentimos o talento de dramaturgo do realizador, o seu lado de criador de um teatro, já vindo de tempos anteriores ao seu cinema.
O que é filmado, assim, é um objecto único de vida. Tudo o que passa pelos nossos olhos são episódios reais de uma vida conjunta de duas pessoas, dois indivíduos que percorrem largos anos envoltos de amor, em todos os sentidos da sua palavra, desde ao mais suave e doce, ao mais agressivo e obsessivo. Ficções como casamento(s), affaires, uniões de facto não servem para definir toda uma vivência, toda uma paixão de viver, as suas consequências, atribulações, separações, ou confissões. Bergman ultrapassa toda a arte e rende-nos às condições reais e cruas da vida, tanto em amor na vida conjunta, na solidão acompanhada, ou no isolamento cruel, egoísta, mas necessário.
O próprio tempo, temática bergmaniana essencial, não se ouve como noutros filmes, apenas não funciona, tal como o despertador que faz acordar o casal certas manhãs, ou é insuficiente para quebrar a vida. É ela que se quebra por si própria, e Marianne (Liv Ullman) quem acorda sempre Johan (Erland Josephson), num toque suave de dedos em cima do seu peito.
Falei ainda de fotografia. Essas são as que estão em casa de cada casal, retratos de momentos da vida, também ficções. Por detrás de cada uma estão as suas cenas da vida conjugal, as suas cenas da vida, o real, o inegável, o inevitável, o que marca cada instante de cada ser, envolto numa união.
Assim parece surgir esse cinema, não como espelho imaginário da vida, ou movimento ilusório de imagens, perfeito na sua ideia, mas como uma passagem por tudo o que de superior nos oferece o seu ideal, para finalmente nos oferecer a vida como ela é. Imprevisível, desajeitada, conflituosa, tanto desconforto como conforto, neurose e humor. E daqui surge toda a inspiração para cineastas como Woody Allen, nos seus movimentos de câmara pausados e marcados, e numa ou outra punchline mais cómica ("uma orquestra de cem mulheres com o período a tentar tocar Rossini" - cito Bergman).
Cenas da Vida Conjugal de Ingmar Bergman não é cinema, não é televisão, não é teatro, não é fotografia. É a vida.

quinta-feira, novembro 24, 2005

Il Gattopardo

Il Gattopardo de Luchino Visconti é uma obra marcante.
Em 1963, data do filme, estamos num ano em que se pode finalmente discutir o cinema italiano como dos mais importantes no mundo inteiro. Após a revitalização do cinema que foi o neo-realismo, surgiram ao longo da década de 50, e nos primeiros anos da seguinte, várias fitas e realizadores-autores que se impuseram como verdadeiros vanguardistas do cinema ou excelentes contadores de histórias, colados à tradição italiana. Aqui encontramos nomes como Michelangelo Antonioni e a sua fantástica trilogia L'Avventura (1960), La Notte (1961) e L'Eclisse (1962), Federico Fellini com I Vitelloni (1953), La Strada (1954), e sobretudo La Dolce Vita (1960) e Otto e Mezzo (1963), Roberto Rossellini e Vittorio de Sica, mestres do neo-realismo, já a servirem de inspiração, e finalmente Luchino Visconti, com obras como Senso (1954), Le Notte Bianche (1957) e Rocco e i suoi Fratelli (1960).
A obra seguinte de Visconti é exactamente Il Gattopardo, um épico de três horas sobre o momento mais marcante da história da Itália - naturalmente, a sua libertação e unificação. Ao longo do filme seguimos este evento visto pela família, e sobretudo, pelos olhos do príncipe Don Fabrizio Salina, numa interpretação fantástica de Burt Lancaster. Podemos ver como, apesar de tantas lutas, tantos gritos, tanta vontade, o essencial fica na mesma. Os nomes continuam, a essencial rotina da nobreza, como explica o genial padre Pirrone, não muda, as classes não vão acabar, as ideias são ideias, mas o povo italiano, os seus modos e tiques, e acima de tudo, o siciliano, esse, não quer mudança, ou melhor, quer mudar tudo para ficar tudo na mesma - escondidos no seu cantinho, lamentando-se diariamente pela tarefa inevitável do viver pesado.
E pela história de um país, das suas personagens e cenas típicas genialmente interpretadas, vemos cenários fabulosos, dignos da arte mais impressionista ou da arte mais ricamente realista. Desde o forrado da sala, aos vestidos das senhoras, aos pratos servidos, à disposição de cada um pelo ecrã scope, cada plano aparece-nos como um quadro eterno, uma imagem digna de um sonho, vindo da maior sensibilidade do belo de todas - a de Visconti.
Mesmo os choques encaixam-se na fluidez da filmagem, as aparições geniais como a de Don Calogero Sedara, novo burguês tosco pinto-calçudo, que se diverte ao calcular tanta riqueza antiga que o rodeia por equivalências em hectares e propriedades, a entrada da fabulosa Angelica, Claudia Cardinale no seu papel mais carnal e fatal, ou as barulhentas tropas e o seu general de botas por dentro de um último baile da mais alta e exclusiva classe. A mesma actriz é protagonista, com Alain Delon, de uma das cenas mais eróticas da história do cinema, ao se "passear", com o seu noivo, pela casa abandonada, já demasiadamente vazia para poder controlar tanto desejo, tanta obsessão carnal (repito-me), uma cena de uma intensidade doentia.
E no fim, o que temos, é a morte do Leopardo, genialmente filmada por Visconti através, desta vez, de um verdadeiro quadro, e de uma valsa, a pontuar o auge da decadência mais bela do cinema. É ele que segue sozinho por entre os tiros de uma guerra inacabada, que ele próprio aceitou naturalmente, uma guerra que já não travará totalmente, nem precisará. Segue o seu sobrinho (Alain Delon), financeiramente equivalente a uma suposta classe média, que protege a sua noiva burguesa, bela, e rica (Claudia Cardiale) dos brutos sons vindos do exterior do seu coche.
Em 1963, o Leopardo morreu. E a partir daí, levou consigo, por entre a bruma de uma manhã suja, todo um cinema de um país, que nunca mais se conseguiu verdadeiramente erguer em todo o seu poder. Fica uma obra que ainda serviu de profunda inspiração, mas para outras bandas de novas terras e novos italianos, para filmes como The Godfather (1972) de Francis Ford Coppola, e a sua sequela de 1974, ou homenagens como The Age of Innocence (1993) de Martin Scorsese. Mas estes não chegam - e nunca é demais repetir. Il Gattopardo é um filme marcante.

domingo, novembro 20, 2005

Lawrence of Arabia

Quem esteve no deserto, sabe que é um sítio perigoso. Não por escorpiões, areias movediças, tempestades, ou ladrões nómadas. T.E. Lawrence nunca tinha estado nele, mas já o sabia, antes de todos. Porque é o sítio da perda. Não da de sentido e orientação - a perda pessoal, a que sentimos que nos atormenta em alguns momentos, pronta para nos tomar conta e derrubar aquilo que somos, ou pensavamos que eramos. A perda onde um se se perde, por si próprio. Onde se perdem as imagens fabulosas de Lawrence of Arabia.
Por isso é que ninguém fica no deserto. Uma vez que se caminha, não se volta atrás, anda-se sempre em frente. Mas Lawrence desafia o que está escrito, blasfema contra o (seu) destino, e muda-se a si mesmo. Torna-se em "Al Orence", mais que um deles, um que parece mostrar o caminho a todas as tribos "árabes", mas sem identidade.
E a identidade deste, após quase quatro horas de fita, no que fica? Um english tradicional, que quer voltar à sua cottage, e praticar pesca no sossego tradicional britânico, um berbére de roupas brancas, destinado a perder-se para sempre no (seu) deserto, um homem "diferente", a lidar para sempre com o choque da violação de tudo o que pensa ser?
O próprio filme, iniciando-se e terminando com uma peça musical e um ecrã preto por alguns minutos, acaba por representar, no fundo, o mesmo que uma das maiores miragens do cinema - a aparição de Sherif Ali (Omar Sharif), tão real como ilusória. Mas como se concluí, "uma ilusão pode ter muito poder".
E assim Lawrence, outra vez como tal, termina - no ínicio do filme - como outra miragem. Ninguém, na verdade, é capaz de descrevê-lo para quem quer transmitir a verdade. E para quem se indigna perante tamanha blasfémia, refuta-se com argumento físico do aperto de mão, tal dia em Damasco. Será mesmo? É ainda a personagem principal que, nesse mesmo dia, apenas responde para o mesmo indivíduo - "haven't we met before?". Na realidade, encontraram-se anos mais tarde, nesse seu funeral, através do espectador, muitas sequências antes.
Miragem, deserto, mistério, medo. Por uma vez, eis que o cinema não existe para que nos possamos encontrar - existe para que nos possamos perder.

sexta-feira, novembro 11, 2005

Like Dylan in the Movies

Em 1965, quando grupos como os Beatles e os Rolling Stones tocavam para salas cheias de adolescentes histéricas, formando um barulho superior a o de um motor de um avião da altura, impedindo as próprias bandas de se ouvirem elas mesmas, um americano esgotava outros recintos mais eruditos, tocando durante hora e meia para outros adolescentes em absoluto silêncio, ouvindo cada palavra das histórias desse poeta, umas realistas, outras já mirabulantes. Bob Dylan foi, assim, filmado por D.A. Pennebaker durante esse breve período, um marco para o cinema documental, para outros músicos, e para o próprio, que nunca mais voltaria atrás - Don't Look Back.
Vemos já Bob Dylan a lutar contra uma imagem sua imposta por fãs e jornalistas, uma responsabilidade pessoal para com cada um que o ouve e que se identifica como "seguidor", a combater uma linguagem estabelecida como único meio de comunicação e de reconhecimento para todos os que o rodeiam. Esses concertos seriam os últimos em que se apresentaria sozinho com uma guitarra acústica, a cantar "pacificamente", tocando todas as músicas que os seus admiradores queriam ouvir.
O cinema de Dylan exigia algo mais, algo único, diferente, uma verdadeira música de protesto, não a já gasta folk, mas violenta, absolutamente surrealista, na verdade, um choque que deitasse abaixo tudo o que se julgava como adquirido ou correcto. Like a rolling stone.
Por isso, tão interessante como ver a personagem bem-humorada ou a proteger-se atrás de uma porta ou de uma máscara, será seguir esse mesmo cinema de Dylan nas músicas e nos álbuns que apresentou nos dois anos seguintes, algumas já tocadas em 1965, como "It's Alright Ma (I'm Only Bleeding)" e "It's All Over Now, Baby Blue", épicos artísticos dignos das personagens cubistas de Picasso, das cores de Matisse, das formas de Cézanne.
Assim foi. Don't Look Back é o testemunho histórico de um artista superior a todas as interpretações, a qualquer mensagem, a caminho do ponto mais alto da sua criatividade. Como o próprio afirmaria, "I ain't gonna work for Maggie's farm no more...", ou mesmo:
"Leave your stepping stones behind, something calls for you
Forget the dead you've left, they will not follow you
The vagabond who's rapping at your door
Is standing in the clothes that you once wore
Strike another match, go start anew
And it's all over now, Baby Blue."

quinta-feira, outubro 20, 2005

Shane e o Western

Dizer qual é o melhor western de sempre é o mesmo que perguntar a várias pessoas qual é a sua cor preferida. Cada um tem os seus tons, e cada um lhes faz lembrar qualquer coisa, da mais banal à mais complexa. Há westerns-comédias, ou quase (os enredos sempre magníficos de Hawks), westerns de luta e de passado (de cada personagem de Ford), westerns-drama (High Noon e o seu tempo real), ou westerns apaixonados, como Johnny Guitar de Nicholas Ray. Esquecendo a cor preferida, este cinéfilo tenderia para escolher, provavelmente, The Searchers do mestre John Ford como o seu, obra-prima absoluta do cinema.
Percebe-se a razão pela qual o western sempre foi um género de eleição e de perfeição no cinema - nele cabe tudo, dele e das suas paisagens parte-se para tudo. No entanto, existe ainda outro. Pode-se não discutir qual deles todos será o melhor, mas será apenas justo considerar um desses mesmos como a quintessência do western - e esse filme chama-se Shane.
A obra de George Stevens possui tudo o que se pede ao género, das melhores maneiras: simplicidade, emoção, rivalidades, paixão. E, já agora, bons movimentos de câmara. Os seus actores eram quase todos desconhecidos do grande público, excepto Jean Arthur, actriz-símbolo de Frank Capra, aparecendo aqui no seu último papel. Alan Ladd, o seu actor principal, foi estrela de série-B da época noir, tendo após este filme surgido como novo herói western-B. O seu cenário é simples, mas estrondoso - são muito poucos os espaços pequenos que permitam fechar toda a história. As suas próprias lutas, tecnicamente preciosas, quando fechadas entre paredes, tendem a explodir para fora. Shane é, também ele, a quintessência do bom-cowboy - fala pouco (só quando deve), só precisa de uma arma, esconde um passado (que nunca revela) à procura de estabilidade e de acolhimento, apaixona-se por uma mulher bonita que o ama, mas sacrifica-se pela família dela e pelo seu isolamento. Assim parte, de novo, rumo à paisagem, sozinho, como tinha feito à chegada. Jack Pallance, a fazer de vilão, de chapéu preto, de luva preta, e com um rosto inconfundível, é, arrisco-me a dizer, o mais perfeito fora-da-lei. Fala com as duas pistolas, e mata com o olhar.
O que está em causa em Shane é, portanto, tudo o que se colocou no género, e não só - a eterna luta, a comunidade, a amizade, o amor, a morte, e o passado. Sempre, o passado, como que relembrado por cada um dos momentos do essencial tema musical. Assim se vive no western, género solitário, mas género por essência, e por inspiração. Caminhando solitariamente no (seu) cinema, espelho da vida.

terça-feira, outubro 18, 2005

Last Days

Last Days é um filme de um dos cineastas norte-americanos mais importantes da actualidade (o que ainda se pode chamar verdadeiramente "cinema de autor" hoje em dia) num autêntico ponto de mestria técnica. A própria obra tem sido vista como um ponto final na trilogia da "morte juvenil", também testemunhada no minimalista mas belíssimo Gerry, e em Elephant, vencedor da Palma de Ouro de Cannes. Os pontos comuns entre as três fitas são reconhecíveis, mas cada um adquire a sua beleza própria - e Last Days não é excepção.
No que poderia facilmente ser um filme em crescendo emocional até ao seu momento fatal, com grandes momentos de agressividade ou choque físico e verbal, acaba por ser uma reflexão, em todo o seu sentido interior, dos últimos dias de alguém em solidão absoluta e total, à procura de uma certa catarse, que o limpe ou o liberte (como pergunta certa personagem a dada altura), de tudo o que se teria conhecido, dito, ou até tocado. Aliás, as últimas músicas da vida de Barry são momentos fantásticos de preenchimento sonoro, e da sua própria desconstrução (sons que se vão confundindo, cordas partidas, berros que se ultrapassam...), testemunhadas por movimentos de câmara perfeitos.
O que se prolonga pelo tempo é um ser em contacto com os elementos mais puros da natureza, em rejeição do mundo exterior, e dos que o habitam, que se auto-flagelam no prazer físico, tóxico, e imundo, ao som de Venus in Furs. A intimidade ou ilusão física dá lugar a uma série de deambulações por caminhos e mais caminhos, desconhecidos e descobertos, por Barry e pelo próprio espectador em simultâneo, em planos unicamente característicos de Van Sant, tanto na fabulosa luz do dia claro, como na noite enevoada, orquestrada por odes musicais inesperadas, ou estranhas frases murmuradas para não se sabe quem.
E o fim de Barry torna-se angelical, num dos planos mais bonitos de todo o filme - o que tem alma, no seu momento mais lúcido, a libertar-se do corpo, como um anjo a caminho do céu, uma imagem digna do mais belo Renascentismo, uma imagem divina de Miguel Ângelo.
A própria beleza de todo o movimento e montagem de Van Sant estende-se ao som, recheado de barulhos longínquos, comuns, mas também como que aleatórios e bizarros, assim que outros promenores, coros, sinos, ou memórias sonoras, em substituição de uma música ou de outros diálogos.
Last Days é, assim, todo um momento, uma proximidade constante de morte, refúgio, solidão, pureza, nos últimos dias de vida de alguém que ninguém conhecia, nem conhecia ninguém. Uma fantástica obra de arte.

segunda-feira, outubro 17, 2005

Uma imagem de Alice

Mais que sobre um desaparecimento, Alice de Marco Martins é um retrato - de uma cidade anónima e dos seus arredores sem detalhes, de uma rotina eterna e obsessiva, de uma ausência, que parece prevalecer sobre qualquer outra emoção, ou raramente dá lugar a outra expressão que aquela carregada por Nuno Lopes ao longo de quase todo o filme. Ao colocar-se perante uma outra câmara de filmar, que não uma das suas, e ao ver-se em todos os televisores colocados à sua frente, este, e nós, deparamo-nos com a verdadeira realidade deste filme - uma (série de) imagem(ns) plana(s), desprovida(s) de sentido vivo, totalmente ausente(s).
A própria ideia de intimidade é ou rejeitada ou ignorada ao longo de toda esta obra. São imagens que não se vêem de um casal, imagens reais que não se vêem de uma filha, são festas, beijos, e afectos negados a todo um círculo de pessoas, em todos os seus momentos. Prevalece aqui a obsessão imaginária de uma condição, ou função em falta, o pai, que puxa por si, por uma imagem, e rejeita (fisicamente) a condição física, a mãe, até às suas últimas consequências.
E perante uma "ameaça" de reencontro físico com a sua filha, o pai (ou a imagem de um pai), não se precipita e corre atrás dela, não berra, não se agita. Apenas a segue, lentamente, tal como um outro frame qualquer da sua colecção de gravações (sempre as mesmas, outro indício de repetição), como se surgisse agora o medo de quebrar o seu "sistema", ou melhor, o seu ritmo e valor (vazio) de imagem.
A filha Alice e, de novo, a (sua) ausência, está em cada plano da cidade, em cada (raro) desvio de olhar, em cada nota (repetida) que se ouve ao longo de um tempo, nunca tão cíclico.
O que fica no final, inteligentemente, e que nos acaba por comover certeiramente, é a esperança, no único momento de todo o filme em que surge alguém a reparar nesse pai em falta. E daí se guarda o que faz viver a sua personagem, caminhando em frente.

domingo, outubro 02, 2005

O Éden, o Rebelde, o Gigante

Um dos momentos mais marcantes para um cinéfilo, para além de grandes filmes ou grandes sessões, são as chamadas aparições. E uma das maiores delas todas é a de James Dean, mesmo cinquenta anos após a sua morte. Porque à semelhança de outras, ver James Dean no ecrã é ver tanto vida como (a sua) morte, um misto de real com divino, de um ser complexo com um anjo sem sexo - assim se apaixonaram todos por ele nos bastidores de Rebel Without a Cause, Nicholas Ray, Natalie Wood, e Sal Mineo. Depois desse dia, nunca mais se vê da mesma maneira, nunca mais se se mexe do mesmo modo, nunca mais se joga repetidamente no palco da vida. Porque Dean é totalmente diferente de qualquer outro actor conhecido - é espontâneo, ultimamente verdadeiro, sincero, totalmente original e surpreendente. Muito para além da sua conhecida adopção do "método" do Actor's Studio, um modo de actuar baseado na exploração da psyche do próprio actor (contra todas as críticas, fascinante), surgiu algo que parece quebrar todas as barreiras tradicionais da interpretação artística, algo que ultrapassa a própria representação, a sua mentira, e as fronteiras entre indivíduo, personagem, e sobretudo cinema. Não se trata sequer do caso de um actor levar todo um filme por si - essa ideia acaba ela própria por ser quebrada. O que se assiste é todo um outro cinema, tanto dele como nosso. Porque Dean procurava sempre algo de puro, algo que o sossegasse, algo de verdadeiro. Como todos nós.
Assim, ver James Dean é mais que um privilégio - é um choque nunca antes assistido, algo que acaba por mexer com o espectador tanto intelectualmente como sentimentalmente. É apaixonar-se de novo e constantemente pelo cinema, ganhar uma fúria de viver. Esta é a marca de um actor reconhecido em apenas três filmes, do mito mais verdadeiro e real de todos. A estreia dos seus dois últimos após a sua morte, o fabuloso e já mencionado Rebel Without a Cause e Giant (de George Stevens), e toda a reacção que se seguiu, com testemunhas a negarem a sua morte, tendo os próprios filmes em mão para prová-lo, apenas vem a provar a eternidade do cinema. Aqui, não se morre. Vive-se intensamente.
James Dean é o maior actor de sempre do cinema, porque é eterno.

sexta-feira, setembro 16, 2005

Uma actriz monumental

Após ver um filme como Dark Victory, é difícil não se render à suprema personalidade, olhar, e talento de Bette Davis. É difícil não nos comovermos ao que realmente torna esse filme num objecto essencial para qualquer cinéfilo - todo o olhar da actriz, que nos conduz até à sua morte, ponto final anunciado no filme. Esse mesmo momento, e os seus últimos planos, são os de uma personagem cheia de vida confrontada com os seus últimos minutos, suaves, tranquilos, e mesmo ternurentos de vida e de despedida a todos os que a amaram.
A presença de Davis é de tal maneira fulgurante que não cabe no ecrã - é conhecida a sua vida pública activa, combativa, contra estúdios e rivais, também no seu próprio interesse. Mas o seu talento é raro, e a sua postura ainda mais - alguém de uma força tremenda, de um olhar, de um rosto, e de feitios que valem por mil palavras, de uma atitude que, mais que se confundir, carrega e levanta um filme e um cenário, uma presença inegável e nunca mais igualada. Sugerir algo de igual hoje em dia seria patético.
Por isso, quando finalmente se fecham os seus magníficos olhos nesta fita, para encarar o seu último momento, a imagem vai desaparecendo, e o que nos fica é a sua força inabalável de vida, já pacificada, e em harmonia com tudo o resto. Pela primeira vez, e muito brevemente, o filme resume-se a si próprio, no apagamento do rosto e da visão de Davis. Quando surge o momento em que esta se prova deteriorada e sem retorno, é o maior dos choques para o espectador - ele sabe que tudo (Davis) vai encontrar o seu fim. E assim fatalmente se fecham uns olhos, um rosto, um olhar. Mas que rosto, que olhar.

quinta-feira, setembro 15, 2005

A solidão do cinéfilo

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Para qualquer cinéfilo militante, a sensação de se dirigir a uma sala de cinema sem companhia é já algo de perfeitamente natural, óbvio, parte integrante do dia-a-dia, ou, se quiserem, muitas vezes o ponto alto desses. É a partir da nossa solidão que fugimos dela própria, que nos apresentamos na sala como um fantasma de imagens perante outros fantasmas projectados - assim somos cinema.
O factor "companhia" surge várias vezes, e torna-se sempre determinante para toda experiência sentida dentro da sala. Continua o nosso cinema a ser confrontado, mas já de outra maneira, permitindo certos pontos, características ou tiques de se sobrevalorizarem perante um certo reagir habitual. Muitas vezes, filmes tornam-se sensacionais pela companhia perfeita, desinteressantes por acompanhantes menos óbvios ou chatos, cenas de grande violência provocam risadas nervosas ou desafiadoras de uma certa condição, momentos aparentemente banais tornam-se em cenas centrais, e por aí fora.
Em linguagem crítica, não é inocente a primeira pergunta feita que todos fazem uns aos outros à saída da sala - "o que é que achaste?". Se assim o é, é para descobrirmos a nossa opinião sobre o que vimos. Tal facto retira brevemente o cinéfilo da sua solidão e da sua condição humana única, e mostra que o cinema também são os outros. Mas há filmes que devem sempre ser vistos nessa condição suprema solitária, ou dias em que parece que só se vai ao cinema sozinho. Todos nos recordamos dos nossos primeiros beijos (The Quiet Man), dos primeiros olhares (Bette Davis), dos primeiros rostos e paixões infinitas (Marilyn), dos momentos que julgavamos perdidos na nossa solidão (Rebel Without a Cause), de um amor que parecia nunca ter existido (Some Came Running), da dimensão de uma culpa e da humanidade (Umberto D.), das primeiras explosões (À Bout de Souffle), das primeiras lágrimas (Vivre sa Vie), da nossa permanente inocência (Les Quatre Cents Coups). E por muita ou pouca companhia, esses momentos serão para sempre nossos. Assim caminha o cinéfilo sozinho pela rua fora, de volta ao seu lar, para se juntar de novo ao sonho numa outra (mesma) noite.

sábado, julho 30, 2005

A Janela Indiscreta

Rear Window é o cinema na sua perfeição. Ou melhor, é o filme perfeito, ou uma obra onde mais perto se esteve de um chamado "cinema puro" - de exclusivo movimento e de desenrolar de toda uma história a partir de um só sítio (o quarto de James Stewart, ou a nossa sala de cinema), de projecção de vários écrans (as outras janelas) dentro daquele único que vemos, o voyeurismo na sua condição máxima como existência humana, ou uma pura lição de mestria técnica, e não só, de cinema. Assim nos é feita toda a introdução necessária ao espectador no começo do filme por um puro movimento de câmara na mesma sala de Stewart - está calor, o protagonista está numa cadeira de rodas com uma perna em gesso (onde se lê o seu nome), provocada por um acidente de trabalho, comprovado pelas próprias fotografias que ele tirou na sua última missão, a de uma corrida de automóveis, para um homem habituado ao perigo, ao ter estado na guerra ao serviço da aviação do seu país - um momento absolutamente genial, sem uma única palavra.
Apenas Hitchcock saberia filmar um filme assim. Cada momento é sustentado pelo seu choque, cada prova aparentemente negada se arrasta e sobrevive por um gesto - o comichão de Stewart, um certo McGuffin que acaba por carregar a vontade perversa insaciável, um agitar de copos, como se se magicasse todo um fim que se deseja, ou uma massagem nas suas costas, que "arrefece" os seus músculos e chama-os para se mexer e remexer no seu cinema.
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Hitchcock não só nos faz ver coisas que não estão lá, como oferece prazer total ao espectador - tanto no seu desejo de crime, como no de breve e fraquíssima decepção, imediatamente quebrada por outro acontecimento, como na junção de cada um dos cinemas que vemos em cada uma das telas (as janelas). Uma música que parte de um lado e chega a outro, e que evita o que seria um destino, ou um pobre e inocente assassínio que parece levar todos às suas varandas, excepto o indivíduo que sabe o que os outros nem se interrogam, e aquele outro que já não aguenta o seu comichão.
No fim, mais que uma vitória de casamento (a fabulosa Grace Kelly, centro de uma das aparições mais belas do cinema - um beijo talvez apenas "superado" pelo de The Quiet Man de Ford, dependendo do gosto), e que conquista finalmente o seu amor ao apontar a aliança no seu dedo (tal como a outra "Miss Lonely Heart", que aponta para o disco que a salvou), mais que uma vitória da intuição feminina (a revista de moda que vence a dos Himalaias no final), mais que uma vitória de um crime (talvez nunca um tenha sido tão desejado, mais até que uma noite de amor de um par numa só cama, às escondidas de quem manda), trata-se de uma vitória do cinema, e da sua concretização num dos seus estados mais puros e verdadeiros. No génio de Alfred Hitchcock, Monsieur Hitchcock, aquele que nos mostrou tudo o que queriamos que fosse mostrado, para além de qualquer limite e de qualquer teorização. Rear Window não é só um exemplo de como se faz um filme - é simplesmente cinema puro.

sexta-feira, julho 22, 2005

En Passion

En Passion de Bergman não é só (sobre) paixão - é sofrimento, angústia, mentira, neurose, trauma e sentimento, ou seja, tudo o que é humano. É um homem perdido na(s) sua(s) identidade(s), na angústia da sua condição e da de todos os outros, num mundo sem verdade ou propósito, o nosso, o de cada um destas personagens, aleanadas da verdade, num duplo jogo identitário de representação - os seus actores assim vão interrompendo a narrativa por confissões reais, ou não tanto, interrogados pelo próprio realizador.
O trauma de Bergman, fisicamente presente por assassínios arbitrários dos animais da ilha, pelo coxear de Anna, ou pelas explosões violentas de Andreas sobre esta (e quem mais?), é toda uma constante presente entre personagens, entre diálogos, e entre cenas, no que não se vê. Talvez aí se esconda a verdade desse filme, que parece constantemente escapar ao nosso alcance, e tanto angustiar Andreas. O seu sofrimento é o mais comum de todos, o da condição humana, sob o cinema de Bergman. Um mundo, ou uma ilha, onde se perde o sentido das coisas, onde este nunca existiu, onde se perde a vontade ou de viver (a marca sempre presente do suicídio, e a sua carga de inevitável culpa), ou a inerente à da própria arte e de criar (um artista cínico, que se recusa tanto enfrentar a sua realidade, como uma tal essência original do acto criativo, desprezando-o até).
E nos rostos de Bergman, une-se todo esse cinema, toda uma carga, neste filme, tanto de verdade como de mentira, numa expressão constante e sentida, no grande plano da vida. E quem nunca viu um filme de Bergman não sabe o que é um grande plano.
Assim é no fabuloso plano do rosto de Anna (Liv Ullman), durante cerca de cinco minutos, um dos momentos mais belos de Bergman e de todos os outros cineastas, ou aqueles que se apresentem como tal. Pois escrever Bergman, é escrever Cinema, e tudo o que isso comporta, na sua máxima carga. Mesmo sem resposta, pois o Homem não tem respostas para dar, perante um Mundo que pouco tem para nos oferecer sentido ou razão a tudo o que se sucede, a tudo que julgamos ser a nossa vida. Resta, a este cinéfilo, viver na sua paixão, por Bergman, pelo cinema, por este que é harmonioso no conflito, também solitário, também pacífico como intenso, sempre belo no que não tem que se explicar, mesmo se o Homem não o consegue alcançar. Resta-me reclamar En Passion como dos filmes mais marcantes para Ele, ser doente, como somos todos, passageiro entre salas, sonhos e cores (tal como as passagens sublimes deste filme), solitários mas sinceros. Como Bergman sempre se mostrou.

quinta-feira, julho 21, 2005

The Barefoot Contessa

Ava Gardner em todo o seu esplendor, numa dança cigana, ao ver pela primeira vez aquele que seria o seu "príncipe encantado" - toda a sua história, todo o seu físico, toda(s) a(s) sua(s) cor(es), toda uma beleza fascinante, que não só fascina "os seus homens" (como diz Bogart, que se assume como "pai, amigo, realizador, psiquiatra amador..."), mas que os prega ao chão, de tal maneira que se vêem todos impotentes, mesmo quando esta se apresenta de fato de banho preto, num iate, ao sol, e que a ilumina perante todos eles, num plano fabuloso e central do filme, como todos os outros em que apareça Gardner são. Mas esta impotência não é mais que um ponto de toda uma questão, afinal, sempre a mesma de todos os grandes filmes - a eterna fronteira entre cinema e vida, vida e cinema, com "duas, uma, ou nenhuma dimensão". Assim se juntam e se completam magistralmente relatos entre os homens no seu funeral perante a sua estátua frígida, que apenas se sustém pela sua morte, presente desde o início, e pelo cinema de cada um (o que foi e o que será - "che sará, sará").
A vida como um mau filme, um filme que não resultou pelas conflitualidades da vida, um cinema que se sonha, um real que parece demasiado perfeito, um desfecho fatal e já anunciado, a da condessa descalça, que jogava com o seu cinema, um primo que não o era, um amigo tanto confidente como pai, uma viagem e um barco que para fuga serviram. "Figuras" como estas, potenciais de vida e de sonho, existem por toda a parte, assim o diz Bogart, esta apenas não se prenderá por um par de "sapatos" (e toda a psicologia que isso comporta), e continuará livre, embora o cinema, nosso como dos outros, permanecerá sempre preso a todos, para bem ou para mal.
Maria Vargas acaba, tragicamente, como a história dos seus pais, que sempre amou, também amando o seu príncipe, procurando fatalmente a concretização do ideal dentro da sua realidade. Para uns, fica uma vida, para outros perdurará um cinema, para todos, este será eterno, na divina beleza de Ava Gardner, e da obra-prima de Joseph L. Mankiewicz.

terça-feira, julho 12, 2005

Cinema e Vida

A vida é provisória, instável, muito provavelmente não faz sentido, inexplicável, palco de desencontros eternos e constantes, (discutivelmente) insastifatória para o Homem (tanto para quem quer ou não quer morrer), é temporalmente indefinida e restringidora na sua realidade. Não se pode controlar, remete o sonho para outra qualidade, não escolhe efeitos, ângulos, luminosidade, não ordena sequências nem as junta, não é arte. Na vida, tende-se a escolher caminhos pré-existentes, em vez de criá-los, viver por convenção. A vida é real, dura, crua, raramente a criamos, mais vezes a seguimos.
O cinema é eterno, belo na pior das aparências, total, uno, e harmonioso, com princípio, meio, e fim (mas não necessariamente por essa ordem), é toda uma promessa que vive, e que não se fica pela sua condição pré-definida, é todo um imaginário que interage com inúmeros outros, todo um mundo que se cria e que nos coloca a todos como iguais. É toda uma possibilidade de planos, sequências, coordenadas por uma sala de montagem, local central de construção e desconstrução, cortes e correcções, magia e arte. É dizer tudo por um rosto, mostrar tudo por uma paisagem, jogar com o nosso subconsciente por uma imagem. É todo um movimento que nos cola a um autor, uma visão do mundo que nos retira da solidão, e que nos faz realmente existir. Uma projecção, uma escuridão unicamente iluminada por imagens, um espelho que nos mostra quem somos e, sobretudo, quem podemos ser.
Vida e cinema, separados ou juntos, para sempre presentes. Amar a vida, viver pelo cinema.

terça-feira, julho 05, 2005

Chaplin e o Mundo

A Quimera do Ouro será sempre, para mim, um filme dramático. Uma obra enriquecida por momentos de gags hilariantes, mas sempre ternurentos - Chaplin a brincar com o pão e a fazer o seu número mágico, a luta pela vida contra o canibalismo do seu companheiro de cabana, uma casa a voar no meio de uma tempestade, mas que não acorda a personagem de um sono profundo, ou uma dança com um par de calças velho e roto a cair constantemente (e depois seguradas por um cão que persegue um gato) com o par com que sonhava, o da fotografia que guardava debaixo da sua almofada (certamente para outras tempestades e mágoas).
Porque os momentos mais marcantes desta obra serão sempre o de Chaplin e a sua solidão - os seus modestos aposentos a cumprir a promessa de um lar impecavelmente arranjado para uma passagem de ano prometida, não cumprida, mas sempre perdoada, os presentes e boa-fé para todos, a sua explosão total de alegria, que acaba por anular o efeito de destruição que esse provoca, ou finalmente, um corpo que entreabre uma porta para ouvir o som longínquo da convivência e da comunhão entre pessoas e camaradas, um rosto que se encosta a uma janela gelada para receber o calor da vida, num dos momentos mais belos e eternos de sempre.
A sua obra-prima está na sua sinceridade, uma humanidade talvez pessimista, talvez cómica, mas inerente a qualquer um. Uma solidão de um indivíduo perante um mundo que o trama (os efeitos da força da natureza, que parece varrer tudo o que é paisagem - esta acaba por ser as próprias pessoas), que nunca mudará, nem por muitas outras minas. Assim também fica Chaplin, para sempre o mesmo, na sua quimera - o seu cinema, por fim concretizado e realizado.

segunda-feira, junho 27, 2005

Antes do Destino

Antes do Amanhecer, ou do Anoitecer, não somos nada sem o nosso cinema. Cinema que criamos, que nos angustia, que nos faz também viver, e sonhar por mais, em qualquer lugar, aqueles por onde passamos, aqueles que deixamos, e que continuam a existir pela eternidade do tempo (aquela que ambicionamos). No cinema há espaço para o receio, para o cepticismo, mas sem dúvida muito mais para o idealismo, para o romantismo, o que toca cada plano, cada promenor, cada sombra ou cada raio de luz, a que nos projecta e que é projectada. Apenas desejamos ser levados por ela, que nos acorde, que nos ilumine, que traga encanto, magia (projecção), que nos faça ver o que não acreditavamos que alguma vez poderiamos ver. Por essa concretização, por cada detalhe que se junta no filme, enriquecemo-nos humanamente, e dificilmente alguma vez o deixaremos. Porque é por ele que sonhamos, que nos agarra ao que verdadeiramente amamos, que nos transtorna na sua (quase) fatalidade, que modifica e joga com as nossas "moléculas", das quais somos compostos - os sentimentos.
Antes ou depois dele(s), seremos sempre a mesma pessoa, nunca mudaremos, e damo-nos conta da mera passagem que uma vida pode ser. Mas vivemos como que pela necessidade de um preenchimento, de um vazio que somos ou eramos e que queremos deixar de ser. Pelo explosão de romantismo, ou pelo doce transbordar de um desejo inevitável, superior ao destino - o desejo do nosso cinema, para que possa crescer, e que nos mude a nós próprios.
E cada sítio vazio é um local onde nos encontramos, onde nos encontrámos, onde esse desejo nasceu, existiu, e de onde partiu para outros, acompanhando-nos, formando-nos, puxando-nos para voltar, voltar sempre a esse sítio - onde estamos, de onde partimos, onde já ficamos.
O retorno é inevitável, pois o sentimento não morre, muito menos o nosso cinema. É por aí que vivemos, pelo que antes era sonho, mas agora realidade. "Flowing downstream, caught in the current, I'll carry you, you'll carry me, that's how it could be". "Just in time".

terça-feira, junho 21, 2005

A Morte do Cinema

Entre todas as personagens de Sunset Boulevard, custa perceber quem são as reais e as fictícias - Norma Desmond ou Gloria Swanson, Max von Mayerling ou Eric von Stroheim (realizador de Swanson em Queen Kelly, filme projectado dentro do primeiro), Cecil B. De Mille como actor ou como realizador (também de Gloria, em diversos filmes), os estúdios Paramount como cenário ou local de "trabalho", ou outros "símbolos" do cinema mudo, entre os quais Buster Keaton.
De todas elas, parece ser Gloria Swanson, na sua "loucura", a que percebe e a que vive mais o cinema, o do "coração", como ela diz ao seu argumentista, aquele "dos rostos", e não "o das palavras". A sua luta não se resume a uma questão de glória (como no nome) pessoal, mas sim de eterno amor a uma arte - o cinema, o mudo, no seu estado mais puro. Aquele pelo qual um rosto valia duas páginas de diálogos e de confissões emocionais, aquele em que a história não era aquela "que não chegava" para fazer um filme, mas que nos mostrava ele próprio outra, a que se dirige a nós, "as pessoas do escuro", às quais Norma/Gloria dedica o último fabuloso plano do filme, ao se aproximar de nós, no seu último close-up.
E neste filme, a confusão de imaginários é tal, que partimos de uma narração de um morto, de realizações reais (Wilder), semi-reais (DeMille, e o filme que realizava realmente na altura, no seu próprio estúdio), esquecidas e relembradas (von Stroheim), para luzes que iluminam personagens e pessoas, uma avenida real como local de um "crime" fictício (filmado de forma soberba), ou a projecção de um outro filme realizado e exibido dentro do todo que comporta este.
"I didn't know you were planning a comeback". "I hate that word! It's a return..." - tal frase transpira verdade cinéfila, concretizada pela imagem mais viva deste filme, um filme de morte, na confusão de projecções que se reúne magistralmente no rosto de Norma/Gloria (a que surge dentro do próprio filme, e a que passa o filme que vemos dentro na sala).
E da "morte" do mudo, ou do seu embalsamar, tal como o chimpanzé de Norma, enterrado por von Mayerling/von Stroheim (este último também vítima dos estúdios), resta-nos a memória que nunca se apaga, que parece renascer por cada foco de luz, tanto da piscina onde cai o corpo (de uma forma curiosamente arrastada), como das câmaras que filmam cada papel. "Let's have another close-up".

segunda-feira, junho 20, 2005

O Cinéfilo

"La cinéphilie est une maladie, férocement contagieuse, dont on ne se débarrasse que très rarement. Elle peut être l'histoire de quelques saisons, ou l'obsession d'une vie. La cinéphilie - pour qui s'y prend - devient alors un travail à temps plein, qui invalide ou rend difficile toutes les autres (études, emploi, vie familiale). La salle de cinéma est par excellence un lieu où s'effectue un transfert fantasmatique qui se prolonge dans toutes les sphères que décide d'habiter l'individu : maison, appartement, café, rue. Pour le cinéphile, le monde est par essence un reflet amoindri, une copie dégradée de la vie vécue au cinéma, et le cinéma, un substitut de la vie. La vie est toujours là où luit le projecteur : c'est là qu'elle atteint sa plus haute densité, que peuvent culminer des affects inimaginables dans la vie ordinaire. Cette vision représente aujourd'hui ce qu'on appelle un vrai cinéphile" (extracto de texto de André Habib, presente em http://www.horschamp.qc.ca/article.php3?id_article=175).
A cinefilia é isto - o prolongar de um imaginário brilhante e eterno em todos os aspectos da vida comum e provisória. É viver o seu cinema por uma dimensão luminosa, a mesma que ilumina o ecrã na sala, que projecta as imagens, e que nos une fantasmagoricamente enquanto espectadores. É uma humanidade que nos preenche e que nos recoloca num lugar tão verdadeiro quanto mágico. É viver um passar de imagens constante na nossa tela, que nos une a quem vemos, ao que vemos, e à sala de cinema. É uma ilusão de tempo e de movimento, condição essencial para a sua ambição, é reimaginar a vida. Não viver por ela, mas viver a partir dela, em constante projecção. Não apenas um filme da vida, mas algo de uma qualidade muito superior. É a fusão total de imaginários pela imagem e pelo som (sem necessariamente se fazer ouvir), num momento eterno e total. É a vontade de tudo ver e tudo conhecer, de unir a memória a todos os momentos, de passado, presente, e futuro, de constantes citações e alusões. É vermo-nos no nosso ecrã, rodeado de personagens, situações, planos, sequências, ângulos, luz, e agir dessa maneira. Muito mais que um jogo, é uma realidade, uma militância.
De outra forma, é não comer para ir ver dois ou três filmes seguidos, ou não dormir pelo passar constante de imagens. Achar que a vida é importante, mas o cinema muito mais.

sábado, junho 18, 2005

Le Tourbillon de la Vie

Resumir Jules et Jim a um conjunto de características não é das tarefas mais fáceis. Apenas direi que se trata de um dos filmes mais misteriosos e ricos do génio de François Truffaut.
Do que acabou por se tornar numa obra cinematográfica de uma geração e foco de uma paixão cinéfila intensa, parece perdurar no tempo, e até hoje, como algo de extremamente desconcertante, tanto pela sua sinceridade, como pela sua fatalidade. Por um conjunto de características e circunstâncias aparentemente joviais, Jules et Jim impõe-se como dos filmes que mais marcas deixam no cinema e no espectador, este recolocado tanto fora como dentro do trio de personagens, numa experência intensa e marcante de identidade.
Toca-nos, por ela, a busca pela eternidade - a estátua do Adriático, personagens que não envelhecem, Catherine como mulher de todos os homens, Paris e a sua Belle Époque, o tempo que passa apenas como graus de areia numa ampulheta. Como uma música que se toca, mas que ainda não está pronta.
Alors tous deux on est repartis,
Dans le tourbillon de la vie,
On a continué à tourner,
Tous les deux enlacés, tous les deux enlacés.
Giramos, giramos, de amor para amor, de um lugar para outro, de uns braços para outros. Tudo intenso, tudo misterioso, tudo simples, tudo em vida.
E o choque previsível é o da morte - é aqui que a música acaba. Tous les deux enlacés, tous les deux enlacés. Até lá, pela vida, jogamos com ela (esta e a outra), por máscaras ou corridas, a brincar com os seus vestígios.
E como fazê-lo? Dans le tourbillon de la vie. Com um bocadinho de batota - Catherine e a corrida, soberbamente filmada ("Vous avez triché! Oui, mais j'ai gagné"), desencontros (im)previstos, mergulhos ensaiados.
E toda a destruição está presente na câmara de Truffaut, que gira e corre, para além de toda a memória, seguindo o momento. Pelas corridas e passeios, por cada cara de Catherine (sequência fabulosa), até ao soulagement da última cena, no testemunhar do que sobrevive.
Jules et Jim marca-nos pelo que é - a união perfeita de lirismo e movimento, de imagem e de ausência, de memória e reconhecimento, de paixão e morte, e de todos os seus tempos. Uma beleza libertina, clássica e fatal.

sexta-feira, junho 17, 2005

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O cinema e a vida.
A cinefilia.