sábado, julho 30, 2005

A Janela Indiscreta

Rear Window é o cinema na sua perfeição. Ou melhor, é o filme perfeito, ou uma obra onde mais perto se esteve de um chamado "cinema puro" - de exclusivo movimento e de desenrolar de toda uma história a partir de um só sítio (o quarto de James Stewart, ou a nossa sala de cinema), de projecção de vários écrans (as outras janelas) dentro daquele único que vemos, o voyeurismo na sua condição máxima como existência humana, ou uma pura lição de mestria técnica, e não só, de cinema. Assim nos é feita toda a introdução necessária ao espectador no começo do filme por um puro movimento de câmara na mesma sala de Stewart - está calor, o protagonista está numa cadeira de rodas com uma perna em gesso (onde se lê o seu nome), provocada por um acidente de trabalho, comprovado pelas próprias fotografias que ele tirou na sua última missão, a de uma corrida de automóveis, para um homem habituado ao perigo, ao ter estado na guerra ao serviço da aviação do seu país - um momento absolutamente genial, sem uma única palavra.
Apenas Hitchcock saberia filmar um filme assim. Cada momento é sustentado pelo seu choque, cada prova aparentemente negada se arrasta e sobrevive por um gesto - o comichão de Stewart, um certo McGuffin que acaba por carregar a vontade perversa insaciável, um agitar de copos, como se se magicasse todo um fim que se deseja, ou uma massagem nas suas costas, que "arrefece" os seus músculos e chama-os para se mexer e remexer no seu cinema.
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Hitchcock não só nos faz ver coisas que não estão lá, como oferece prazer total ao espectador - tanto no seu desejo de crime, como no de breve e fraquíssima decepção, imediatamente quebrada por outro acontecimento, como na junção de cada um dos cinemas que vemos em cada uma das telas (as janelas). Uma música que parte de um lado e chega a outro, e que evita o que seria um destino, ou um pobre e inocente assassínio que parece levar todos às suas varandas, excepto o indivíduo que sabe o que os outros nem se interrogam, e aquele outro que já não aguenta o seu comichão.
No fim, mais que uma vitória de casamento (a fabulosa Grace Kelly, centro de uma das aparições mais belas do cinema - um beijo talvez apenas "superado" pelo de The Quiet Man de Ford, dependendo do gosto), e que conquista finalmente o seu amor ao apontar a aliança no seu dedo (tal como a outra "Miss Lonely Heart", que aponta para o disco que a salvou), mais que uma vitória da intuição feminina (a revista de moda que vence a dos Himalaias no final), mais que uma vitória de um crime (talvez nunca um tenha sido tão desejado, mais até que uma noite de amor de um par numa só cama, às escondidas de quem manda), trata-se de uma vitória do cinema, e da sua concretização num dos seus estados mais puros e verdadeiros. No génio de Alfred Hitchcock, Monsieur Hitchcock, aquele que nos mostrou tudo o que queriamos que fosse mostrado, para além de qualquer limite e de qualquer teorização. Rear Window não é só um exemplo de como se faz um filme - é simplesmente cinema puro.

sexta-feira, julho 22, 2005

En Passion

En Passion de Bergman não é só (sobre) paixão - é sofrimento, angústia, mentira, neurose, trauma e sentimento, ou seja, tudo o que é humano. É um homem perdido na(s) sua(s) identidade(s), na angústia da sua condição e da de todos os outros, num mundo sem verdade ou propósito, o nosso, o de cada um destas personagens, aleanadas da verdade, num duplo jogo identitário de representação - os seus actores assim vão interrompendo a narrativa por confissões reais, ou não tanto, interrogados pelo próprio realizador.
O trauma de Bergman, fisicamente presente por assassínios arbitrários dos animais da ilha, pelo coxear de Anna, ou pelas explosões violentas de Andreas sobre esta (e quem mais?), é toda uma constante presente entre personagens, entre diálogos, e entre cenas, no que não se vê. Talvez aí se esconda a verdade desse filme, que parece constantemente escapar ao nosso alcance, e tanto angustiar Andreas. O seu sofrimento é o mais comum de todos, o da condição humana, sob o cinema de Bergman. Um mundo, ou uma ilha, onde se perde o sentido das coisas, onde este nunca existiu, onde se perde a vontade ou de viver (a marca sempre presente do suicídio, e a sua carga de inevitável culpa), ou a inerente à da própria arte e de criar (um artista cínico, que se recusa tanto enfrentar a sua realidade, como uma tal essência original do acto criativo, desprezando-o até).
E nos rostos de Bergman, une-se todo esse cinema, toda uma carga, neste filme, tanto de verdade como de mentira, numa expressão constante e sentida, no grande plano da vida. E quem nunca viu um filme de Bergman não sabe o que é um grande plano.
Assim é no fabuloso plano do rosto de Anna (Liv Ullman), durante cerca de cinco minutos, um dos momentos mais belos de Bergman e de todos os outros cineastas, ou aqueles que se apresentem como tal. Pois escrever Bergman, é escrever Cinema, e tudo o que isso comporta, na sua máxima carga. Mesmo sem resposta, pois o Homem não tem respostas para dar, perante um Mundo que pouco tem para nos oferecer sentido ou razão a tudo o que se sucede, a tudo que julgamos ser a nossa vida. Resta, a este cinéfilo, viver na sua paixão, por Bergman, pelo cinema, por este que é harmonioso no conflito, também solitário, também pacífico como intenso, sempre belo no que não tem que se explicar, mesmo se o Homem não o consegue alcançar. Resta-me reclamar En Passion como dos filmes mais marcantes para Ele, ser doente, como somos todos, passageiro entre salas, sonhos e cores (tal como as passagens sublimes deste filme), solitários mas sinceros. Como Bergman sempre se mostrou.

quinta-feira, julho 21, 2005

The Barefoot Contessa

Ava Gardner em todo o seu esplendor, numa dança cigana, ao ver pela primeira vez aquele que seria o seu "príncipe encantado" - toda a sua história, todo o seu físico, toda(s) a(s) sua(s) cor(es), toda uma beleza fascinante, que não só fascina "os seus homens" (como diz Bogart, que se assume como "pai, amigo, realizador, psiquiatra amador..."), mas que os prega ao chão, de tal maneira que se vêem todos impotentes, mesmo quando esta se apresenta de fato de banho preto, num iate, ao sol, e que a ilumina perante todos eles, num plano fabuloso e central do filme, como todos os outros em que apareça Gardner são. Mas esta impotência não é mais que um ponto de toda uma questão, afinal, sempre a mesma de todos os grandes filmes - a eterna fronteira entre cinema e vida, vida e cinema, com "duas, uma, ou nenhuma dimensão". Assim se juntam e se completam magistralmente relatos entre os homens no seu funeral perante a sua estátua frígida, que apenas se sustém pela sua morte, presente desde o início, e pelo cinema de cada um (o que foi e o que será - "che sará, sará").
A vida como um mau filme, um filme que não resultou pelas conflitualidades da vida, um cinema que se sonha, um real que parece demasiado perfeito, um desfecho fatal e já anunciado, a da condessa descalça, que jogava com o seu cinema, um primo que não o era, um amigo tanto confidente como pai, uma viagem e um barco que para fuga serviram. "Figuras" como estas, potenciais de vida e de sonho, existem por toda a parte, assim o diz Bogart, esta apenas não se prenderá por um par de "sapatos" (e toda a psicologia que isso comporta), e continuará livre, embora o cinema, nosso como dos outros, permanecerá sempre preso a todos, para bem ou para mal.
Maria Vargas acaba, tragicamente, como a história dos seus pais, que sempre amou, também amando o seu príncipe, procurando fatalmente a concretização do ideal dentro da sua realidade. Para uns, fica uma vida, para outros perdurará um cinema, para todos, este será eterno, na divina beleza de Ava Gardner, e da obra-prima de Joseph L. Mankiewicz.

terça-feira, julho 12, 2005

Cinema e Vida

A vida é provisória, instável, muito provavelmente não faz sentido, inexplicável, palco de desencontros eternos e constantes, (discutivelmente) insastifatória para o Homem (tanto para quem quer ou não quer morrer), é temporalmente indefinida e restringidora na sua realidade. Não se pode controlar, remete o sonho para outra qualidade, não escolhe efeitos, ângulos, luminosidade, não ordena sequências nem as junta, não é arte. Na vida, tende-se a escolher caminhos pré-existentes, em vez de criá-los, viver por convenção. A vida é real, dura, crua, raramente a criamos, mais vezes a seguimos.
O cinema é eterno, belo na pior das aparências, total, uno, e harmonioso, com princípio, meio, e fim (mas não necessariamente por essa ordem), é toda uma promessa que vive, e que não se fica pela sua condição pré-definida, é todo um imaginário que interage com inúmeros outros, todo um mundo que se cria e que nos coloca a todos como iguais. É toda uma possibilidade de planos, sequências, coordenadas por uma sala de montagem, local central de construção e desconstrução, cortes e correcções, magia e arte. É dizer tudo por um rosto, mostrar tudo por uma paisagem, jogar com o nosso subconsciente por uma imagem. É todo um movimento que nos cola a um autor, uma visão do mundo que nos retira da solidão, e que nos faz realmente existir. Uma projecção, uma escuridão unicamente iluminada por imagens, um espelho que nos mostra quem somos e, sobretudo, quem podemos ser.
Vida e cinema, separados ou juntos, para sempre presentes. Amar a vida, viver pelo cinema.

terça-feira, julho 05, 2005

Chaplin e o Mundo

A Quimera do Ouro será sempre, para mim, um filme dramático. Uma obra enriquecida por momentos de gags hilariantes, mas sempre ternurentos - Chaplin a brincar com o pão e a fazer o seu número mágico, a luta pela vida contra o canibalismo do seu companheiro de cabana, uma casa a voar no meio de uma tempestade, mas que não acorda a personagem de um sono profundo, ou uma dança com um par de calças velho e roto a cair constantemente (e depois seguradas por um cão que persegue um gato) com o par com que sonhava, o da fotografia que guardava debaixo da sua almofada (certamente para outras tempestades e mágoas).
Porque os momentos mais marcantes desta obra serão sempre o de Chaplin e a sua solidão - os seus modestos aposentos a cumprir a promessa de um lar impecavelmente arranjado para uma passagem de ano prometida, não cumprida, mas sempre perdoada, os presentes e boa-fé para todos, a sua explosão total de alegria, que acaba por anular o efeito de destruição que esse provoca, ou finalmente, um corpo que entreabre uma porta para ouvir o som longínquo da convivência e da comunhão entre pessoas e camaradas, um rosto que se encosta a uma janela gelada para receber o calor da vida, num dos momentos mais belos e eternos de sempre.
A sua obra-prima está na sua sinceridade, uma humanidade talvez pessimista, talvez cómica, mas inerente a qualquer um. Uma solidão de um indivíduo perante um mundo que o trama (os efeitos da força da natureza, que parece varrer tudo o que é paisagem - esta acaba por ser as próprias pessoas), que nunca mudará, nem por muitas outras minas. Assim também fica Chaplin, para sempre o mesmo, na sua quimera - o seu cinema, por fim concretizado e realizado.