sexta-feira, setembro 16, 2005

Uma actriz monumental

Após ver um filme como Dark Victory, é difícil não se render à suprema personalidade, olhar, e talento de Bette Davis. É difícil não nos comovermos ao que realmente torna esse filme num objecto essencial para qualquer cinéfilo - todo o olhar da actriz, que nos conduz até à sua morte, ponto final anunciado no filme. Esse mesmo momento, e os seus últimos planos, são os de uma personagem cheia de vida confrontada com os seus últimos minutos, suaves, tranquilos, e mesmo ternurentos de vida e de despedida a todos os que a amaram.
A presença de Davis é de tal maneira fulgurante que não cabe no ecrã - é conhecida a sua vida pública activa, combativa, contra estúdios e rivais, também no seu próprio interesse. Mas o seu talento é raro, e a sua postura ainda mais - alguém de uma força tremenda, de um olhar, de um rosto, e de feitios que valem por mil palavras, de uma atitude que, mais que se confundir, carrega e levanta um filme e um cenário, uma presença inegável e nunca mais igualada. Sugerir algo de igual hoje em dia seria patético.
Por isso, quando finalmente se fecham os seus magníficos olhos nesta fita, para encarar o seu último momento, a imagem vai desaparecendo, e o que nos fica é a sua força inabalável de vida, já pacificada, e em harmonia com tudo o resto. Pela primeira vez, e muito brevemente, o filme resume-se a si próprio, no apagamento do rosto e da visão de Davis. Quando surge o momento em que esta se prova deteriorada e sem retorno, é o maior dos choques para o espectador - ele sabe que tudo (Davis) vai encontrar o seu fim. E assim fatalmente se fecham uns olhos, um rosto, um olhar. Mas que rosto, que olhar.

quinta-feira, setembro 15, 2005

A solidão do cinéfilo

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Para qualquer cinéfilo militante, a sensação de se dirigir a uma sala de cinema sem companhia é já algo de perfeitamente natural, óbvio, parte integrante do dia-a-dia, ou, se quiserem, muitas vezes o ponto alto desses. É a partir da nossa solidão que fugimos dela própria, que nos apresentamos na sala como um fantasma de imagens perante outros fantasmas projectados - assim somos cinema.
O factor "companhia" surge várias vezes, e torna-se sempre determinante para toda experiência sentida dentro da sala. Continua o nosso cinema a ser confrontado, mas já de outra maneira, permitindo certos pontos, características ou tiques de se sobrevalorizarem perante um certo reagir habitual. Muitas vezes, filmes tornam-se sensacionais pela companhia perfeita, desinteressantes por acompanhantes menos óbvios ou chatos, cenas de grande violência provocam risadas nervosas ou desafiadoras de uma certa condição, momentos aparentemente banais tornam-se em cenas centrais, e por aí fora.
Em linguagem crítica, não é inocente a primeira pergunta feita que todos fazem uns aos outros à saída da sala - "o que é que achaste?". Se assim o é, é para descobrirmos a nossa opinião sobre o que vimos. Tal facto retira brevemente o cinéfilo da sua solidão e da sua condição humana única, e mostra que o cinema também são os outros. Mas há filmes que devem sempre ser vistos nessa condição suprema solitária, ou dias em que parece que só se vai ao cinema sozinho. Todos nos recordamos dos nossos primeiros beijos (The Quiet Man), dos primeiros olhares (Bette Davis), dos primeiros rostos e paixões infinitas (Marilyn), dos momentos que julgavamos perdidos na nossa solidão (Rebel Without a Cause), de um amor que parecia nunca ter existido (Some Came Running), da dimensão de uma culpa e da humanidade (Umberto D.), das primeiras explosões (À Bout de Souffle), das primeiras lágrimas (Vivre sa Vie), da nossa permanente inocência (Les Quatre Cents Coups). E por muita ou pouca companhia, esses momentos serão para sempre nossos. Assim caminha o cinéfilo sozinho pela rua fora, de volta ao seu lar, para se juntar de novo ao sonho numa outra (mesma) noite.