quinta-feira, novembro 24, 2005

Il Gattopardo

Il Gattopardo de Luchino Visconti é uma obra marcante.
Em 1963, data do filme, estamos num ano em que se pode finalmente discutir o cinema italiano como dos mais importantes no mundo inteiro. Após a revitalização do cinema que foi o neo-realismo, surgiram ao longo da década de 50, e nos primeiros anos da seguinte, várias fitas e realizadores-autores que se impuseram como verdadeiros vanguardistas do cinema ou excelentes contadores de histórias, colados à tradição italiana. Aqui encontramos nomes como Michelangelo Antonioni e a sua fantástica trilogia L'Avventura (1960), La Notte (1961) e L'Eclisse (1962), Federico Fellini com I Vitelloni (1953), La Strada (1954), e sobretudo La Dolce Vita (1960) e Otto e Mezzo (1963), Roberto Rossellini e Vittorio de Sica, mestres do neo-realismo, já a servirem de inspiração, e finalmente Luchino Visconti, com obras como Senso (1954), Le Notte Bianche (1957) e Rocco e i suoi Fratelli (1960).
A obra seguinte de Visconti é exactamente Il Gattopardo, um épico de três horas sobre o momento mais marcante da história da Itália - naturalmente, a sua libertação e unificação. Ao longo do filme seguimos este evento visto pela família, e sobretudo, pelos olhos do príncipe Don Fabrizio Salina, numa interpretação fantástica de Burt Lancaster. Podemos ver como, apesar de tantas lutas, tantos gritos, tanta vontade, o essencial fica na mesma. Os nomes continuam, a essencial rotina da nobreza, como explica o genial padre Pirrone, não muda, as classes não vão acabar, as ideias são ideias, mas o povo italiano, os seus modos e tiques, e acima de tudo, o siciliano, esse, não quer mudança, ou melhor, quer mudar tudo para ficar tudo na mesma - escondidos no seu cantinho, lamentando-se diariamente pela tarefa inevitável do viver pesado.
E pela história de um país, das suas personagens e cenas típicas genialmente interpretadas, vemos cenários fabulosos, dignos da arte mais impressionista ou da arte mais ricamente realista. Desde o forrado da sala, aos vestidos das senhoras, aos pratos servidos, à disposição de cada um pelo ecrã scope, cada plano aparece-nos como um quadro eterno, uma imagem digna de um sonho, vindo da maior sensibilidade do belo de todas - a de Visconti.
Mesmo os choques encaixam-se na fluidez da filmagem, as aparições geniais como a de Don Calogero Sedara, novo burguês tosco pinto-calçudo, que se diverte ao calcular tanta riqueza antiga que o rodeia por equivalências em hectares e propriedades, a entrada da fabulosa Angelica, Claudia Cardinale no seu papel mais carnal e fatal, ou as barulhentas tropas e o seu general de botas por dentro de um último baile da mais alta e exclusiva classe. A mesma actriz é protagonista, com Alain Delon, de uma das cenas mais eróticas da história do cinema, ao se "passear", com o seu noivo, pela casa abandonada, já demasiadamente vazia para poder controlar tanto desejo, tanta obsessão carnal (repito-me), uma cena de uma intensidade doentia.
E no fim, o que temos, é a morte do Leopardo, genialmente filmada por Visconti através, desta vez, de um verdadeiro quadro, e de uma valsa, a pontuar o auge da decadência mais bela do cinema. É ele que segue sozinho por entre os tiros de uma guerra inacabada, que ele próprio aceitou naturalmente, uma guerra que já não travará totalmente, nem precisará. Segue o seu sobrinho (Alain Delon), financeiramente equivalente a uma suposta classe média, que protege a sua noiva burguesa, bela, e rica (Claudia Cardiale) dos brutos sons vindos do exterior do seu coche.
Em 1963, o Leopardo morreu. E a partir daí, levou consigo, por entre a bruma de uma manhã suja, todo um cinema de um país, que nunca mais se conseguiu verdadeiramente erguer em todo o seu poder. Fica uma obra que ainda serviu de profunda inspiração, mas para outras bandas de novas terras e novos italianos, para filmes como The Godfather (1972) de Francis Ford Coppola, e a sua sequela de 1974, ou homenagens como The Age of Innocence (1993) de Martin Scorsese. Mas estes não chegam - e nunca é demais repetir. Il Gattopardo é um filme marcante.

domingo, novembro 20, 2005

Lawrence of Arabia

Quem esteve no deserto, sabe que é um sítio perigoso. Não por escorpiões, areias movediças, tempestades, ou ladrões nómadas. T.E. Lawrence nunca tinha estado nele, mas já o sabia, antes de todos. Porque é o sítio da perda. Não da de sentido e orientação - a perda pessoal, a que sentimos que nos atormenta em alguns momentos, pronta para nos tomar conta e derrubar aquilo que somos, ou pensavamos que eramos. A perda onde um se se perde, por si próprio. Onde se perdem as imagens fabulosas de Lawrence of Arabia.
Por isso é que ninguém fica no deserto. Uma vez que se caminha, não se volta atrás, anda-se sempre em frente. Mas Lawrence desafia o que está escrito, blasfema contra o (seu) destino, e muda-se a si mesmo. Torna-se em "Al Orence", mais que um deles, um que parece mostrar o caminho a todas as tribos "árabes", mas sem identidade.
E a identidade deste, após quase quatro horas de fita, no que fica? Um english tradicional, que quer voltar à sua cottage, e praticar pesca no sossego tradicional britânico, um berbére de roupas brancas, destinado a perder-se para sempre no (seu) deserto, um homem "diferente", a lidar para sempre com o choque da violação de tudo o que pensa ser?
O próprio filme, iniciando-se e terminando com uma peça musical e um ecrã preto por alguns minutos, acaba por representar, no fundo, o mesmo que uma das maiores miragens do cinema - a aparição de Sherif Ali (Omar Sharif), tão real como ilusória. Mas como se concluí, "uma ilusão pode ter muito poder".
E assim Lawrence, outra vez como tal, termina - no ínicio do filme - como outra miragem. Ninguém, na verdade, é capaz de descrevê-lo para quem quer transmitir a verdade. E para quem se indigna perante tamanha blasfémia, refuta-se com argumento físico do aperto de mão, tal dia em Damasco. Será mesmo? É ainda a personagem principal que, nesse mesmo dia, apenas responde para o mesmo indivíduo - "haven't we met before?". Na realidade, encontraram-se anos mais tarde, nesse seu funeral, através do espectador, muitas sequências antes.
Miragem, deserto, mistério, medo. Por uma vez, eis que o cinema não existe para que nos possamos encontrar - existe para que nos possamos perder.

sexta-feira, novembro 11, 2005

Like Dylan in the Movies

Em 1965, quando grupos como os Beatles e os Rolling Stones tocavam para salas cheias de adolescentes histéricas, formando um barulho superior a o de um motor de um avião da altura, impedindo as próprias bandas de se ouvirem elas mesmas, um americano esgotava outros recintos mais eruditos, tocando durante hora e meia para outros adolescentes em absoluto silêncio, ouvindo cada palavra das histórias desse poeta, umas realistas, outras já mirabulantes. Bob Dylan foi, assim, filmado por D.A. Pennebaker durante esse breve período, um marco para o cinema documental, para outros músicos, e para o próprio, que nunca mais voltaria atrás - Don't Look Back.
Vemos já Bob Dylan a lutar contra uma imagem sua imposta por fãs e jornalistas, uma responsabilidade pessoal para com cada um que o ouve e que se identifica como "seguidor", a combater uma linguagem estabelecida como único meio de comunicação e de reconhecimento para todos os que o rodeiam. Esses concertos seriam os últimos em que se apresentaria sozinho com uma guitarra acústica, a cantar "pacificamente", tocando todas as músicas que os seus admiradores queriam ouvir.
O cinema de Dylan exigia algo mais, algo único, diferente, uma verdadeira música de protesto, não a já gasta folk, mas violenta, absolutamente surrealista, na verdade, um choque que deitasse abaixo tudo o que se julgava como adquirido ou correcto. Like a rolling stone.
Por isso, tão interessante como ver a personagem bem-humorada ou a proteger-se atrás de uma porta ou de uma máscara, será seguir esse mesmo cinema de Dylan nas músicas e nos álbuns que apresentou nos dois anos seguintes, algumas já tocadas em 1965, como "It's Alright Ma (I'm Only Bleeding)" e "It's All Over Now, Baby Blue", épicos artísticos dignos das personagens cubistas de Picasso, das cores de Matisse, das formas de Cézanne.
Assim foi. Don't Look Back é o testemunho histórico de um artista superior a todas as interpretações, a qualquer mensagem, a caminho do ponto mais alto da sua criatividade. Como o próprio afirmaria, "I ain't gonna work for Maggie's farm no more...", ou mesmo:
"Leave your stepping stones behind, something calls for you
Forget the dead you've left, they will not follow you
The vagabond who's rapping at your door
Is standing in the clothes that you once wore
Strike another match, go start anew
And it's all over now, Baby Blue."