sábado, dezembro 31, 2005

King Kong

Hollywood, os Óscares, e tudo o que vem atrás disso, é algo que todos os anos, sobretudo por este continente, se costuma criticar, ou mesmo ridicularizar, de vez em quando com argumentos interessantes, muitas vezes sem qualquer ponta de razão. Tal como os Estados Unidos são um grande país, a sua cultura é fascinante, e aí mesmo encontramos esse nome, representativo de tantos anos de cinema, histórias fabulosas, sonhos e aventuras.
Nestes últimos anos, é uma constante falar-se da "crise da indústria" - já não existem espectadores, quanto mais cinéfilos, os filmes vêem-se por números, as pessoas parecem desligar-se da magia do cinema, as histórias são banais, as estrelas sem talento. Hollywood perdeu o charme, e entregou-se à mediocridade de um ambiente "reality TV" - actores que são cantores, vindos de programas de televisão-pacote, clichés banais, um cinema sem cultura.
Alguns destes pontos são, de facto, verdade. Basta ver o domínio total de filmes americanos no circuito comercial português, olhar para eles, e perceber a sua (falta de) qualidade. São exactamente isso - filmes que se olham, e não mais, como televisão. No entanto, para quem conhece bem o cinema americano, as suas raízes, as suas histórias, o seu modo de funcionar, apercebe-se também que a sua indústria funciona talvez da mesma maneira do que há décadas atrás, com o mesmo sensacionalismo, com os mesmos filmes ligeiros ou fracotes, apenas de forma adaptada à evolução inevitável do tempo. E com tantos filmes produzidos por ano, alguns serão inevitavelmente bons - nem todos podem passar daqui a muitos anos nas cinematecas. Mas King Kong de Peter Jackson terá certamente lugar cativo em qualquer arquivo.
Curiosamente, este "rejuvenescimento" teve lugar na Nova Zelândia, país natal desse realizador. Mas tudo o que se vê é Hollywood, em todos os seus melhores aspectos. E daí só poderia sair um filme fantástico - Hollywood em todo o seu empenho e inteligência, renovando cenários e efeitos (uma Nova Iorque dos anos trinta impressionantemente reconstruída, uma autêntica homenagem à cidade) que mesmo digitais (para quem me perceba) são sem dúvida dos mais extraordinários já vistos em cinema, Hollywood em constante auto-citação (jogos temporais com nomes de actores, frases, locais, estúdios, até gritos - cinema e vida em agitação permanente), em constante trabalho, risco, entrelinhas (as que Jack quer que Ann veja) e magia.
Este filme, tal como o cinema, e sobretudo o americano, é mágico. Não só pelas já ditas imagens inacreditáveis, não como efeitos de jogo de vídeo, mas sim dotadas de forte carga psicológica, como também pela sua construção notável, a sua maravilhosa banda sonora (algo tão hollywoodesco e belo), a importância do som na sua essência, e não como palavra (passam-se minutos e minutos sem intromissões de pontas de diálogo irritante, desnecessário, numa clara rendição à imagem, essência do cinema), a gestão quase perfeita da emoção e da coragem (pecando talvez apenas em exageros pontuais de uma ou outra personagem secundária), e sobretudo, pelas duas maiores cenas de acção que o cinema já viu, passadas na Skull Island, entre uma corrida inacreditável de uma série de brontossauros, e uma luta absolutamente impressionante entre King Kong e um número de Tiranossauros, que tentam atacar a sua amada. Não há palavras para descrever.
E palavras é o que o cinema não precisa, tal como Kong, e todas as sequências centrais do filme, aparentemente dividido em três - uma introdução e apresentação de personagens, um capítulo inteiramente reservado à acção (e que acção!) na ilha misteriosa, e uma última parte, passada de novo em Nova Iorque, onde brilha o final em que a Beleza se junta ao Monstro, minutos e minutos de novo sem palavras, só imagem, só cinema.
Volta Hollywood, estás perdoada.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Cenas da Vida

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Cenas da Vida Conjugal de Ingmar Bergman não é cinema, não é televisão, não é teatro, não é fotografia. No entanto, recolhe cada um desses elementos na sua essência. Apesar de ter sido feito para a televisão, estando expressamente dividido em seis diferentes episódios, a sua passagem pelas salas de cinema, assim como Saraband, é inevitável. Para além do nome do seu autor, estão diversos planos totalmente pertencentes ao seu universo e dotados do seu toque único - em cada grande plano de Bergman, para além de um rosto ou de um filme, está o rosto, ou o filme, ou as suas ideias. Em alguns momentos, sentimos o talento de dramaturgo do realizador, o seu lado de criador de um teatro, já vindo de tempos anteriores ao seu cinema.
O que é filmado, assim, é um objecto único de vida. Tudo o que passa pelos nossos olhos são episódios reais de uma vida conjunta de duas pessoas, dois indivíduos que percorrem largos anos envoltos de amor, em todos os sentidos da sua palavra, desde ao mais suave e doce, ao mais agressivo e obsessivo. Ficções como casamento(s), affaires, uniões de facto não servem para definir toda uma vivência, toda uma paixão de viver, as suas consequências, atribulações, separações, ou confissões. Bergman ultrapassa toda a arte e rende-nos às condições reais e cruas da vida, tanto em amor na vida conjunta, na solidão acompanhada, ou no isolamento cruel, egoísta, mas necessário.
O próprio tempo, temática bergmaniana essencial, não se ouve como noutros filmes, apenas não funciona, tal como o despertador que faz acordar o casal certas manhãs, ou é insuficiente para quebrar a vida. É ela que se quebra por si própria, e Marianne (Liv Ullman) quem acorda sempre Johan (Erland Josephson), num toque suave de dedos em cima do seu peito.
Falei ainda de fotografia. Essas são as que estão em casa de cada casal, retratos de momentos da vida, também ficções. Por detrás de cada uma estão as suas cenas da vida conjugal, as suas cenas da vida, o real, o inegável, o inevitável, o que marca cada instante de cada ser, envolto numa união.
Assim parece surgir esse cinema, não como espelho imaginário da vida, ou movimento ilusório de imagens, perfeito na sua ideia, mas como uma passagem por tudo o que de superior nos oferece o seu ideal, para finalmente nos oferecer a vida como ela é. Imprevisível, desajeitada, conflituosa, tanto desconforto como conforto, neurose e humor. E daqui surge toda a inspiração para cineastas como Woody Allen, nos seus movimentos de câmara pausados e marcados, e numa ou outra punchline mais cómica ("uma orquestra de cem mulheres com o período a tentar tocar Rossini" - cito Bergman).
Cenas da Vida Conjugal de Ingmar Bergman não é cinema, não é televisão, não é teatro, não é fotografia. É a vida.