quinta-feira, maio 25, 2006

Marie Antoinette

Maria Antonieta, o último filme de Sofia Coppola, teve a sua estreia mundial esta semana no Festival de Cannes, estando incluído na competição para a Palma de Ouro. Ao que parece, a sua recepção não foi das melhores. Após o final da projecção, houve apupos e assobios no lugar dos aplausos esperados pela crítica francesa, que tinha decidido colocar a já chamada “rainha” do festival nas capas de todas as publicações do país.
Na verdade, tal reacção não espanta. A princesa austríaca e rainha de França, como se sabe, não tem das melhores reputações no país que a acolheu – é ainda acusada por muitos como a principal responsável pela decadência financeira e até política em que o país caiu antes da Revolução de 1789, e descrita como uma estrangeira que chegou ao Palácio de Versalhes para corromper definitivamente uma corte e os seus costumes com sucessivas festas, más companhias, e desleixo moral. O seu fim foi a decapitação, julgamento implacável do povo soberano.
O que Sofia Coppola fez com o seu extraordinário filme, e seguindo a visão nacional francesa, foi exactamente o mesmo. Chegou a França com os seus amigos americanos e instalou-se no Palácio de Versalhes para enchê-lo com visões de riqueza decadente, roupas, bolos, festas, um futuro rei que apesar de sexualmente inapto e politicamente frágil, amava a sua mulher e o seu país, e uma jovem Maria Antonieta amante da natureza, delicada com a sua entourage, e mãe atenta dos seus filhos. O seu instinto maternal, aliás, esbarra no protocolo real, ao afirmar perante a câmara que ama a sua filha da mesma maneira que um rapaz herdeiro do trono, e que deseja amamentar este mesmo do seu peito, e não entregá-lo a uma ama oficial. Vemos uma rainha que chora na sua solidão, que prefere companhias divertidas ao dia a dia cerimonial e repetitivo do palácio, que ama a sua família e a enche de ternura, que partilha leituras de Rosseau com as suas amigas e que se entusiasma com a magia da ópera, não se coibindo de aplaudir os seus músicos e as suas personagens como qualquer espectadora vulgar.
Sofia Coppola consegue tornar um filme centrado numa das personagens mais marcantes da História de França e no seu momento mais importante numa obra visual recheada de beleza e encanto, passando praticamente ao lado da questão política, e desconstruíndo toda a ideia tradicional do chamado “filme histórico”. Os grandes bailes são feitos ao som de New Order, os encontros com amantes são momentos delicados e românticos com música de Adam and the Ants (temos quase pena da rainha ao ver a sua paixão partir), encontramos pares de Converse no meio das dezenas de pares presentes no seu quarto, e temos a realizadora a atirar sucessivamente planos de arranjos de comida, copos e flores aos olhos do espectador a ritmo de videoclip. A própria cena de introdução do filme, memorável ao jeito da de Lost In Translation, é feita com uma Kirsten Dunst semi-nua de penas na cabeça a passar os seus dedos por um bolo majestuoso, ouvindo-se as guitarras cortantes dos Gang Of Four. Aqui, não há Visconti para ninguém.
Sofia Coppola não só desfaz o mito de Maria Antonieta inimiga do povo e destruidora de Estados, como o mito do filme histórico. Pegou na História de França e fez dela sua. E o resultado é simplesmente maravilhoso. Que o povo de Cannes tenha cortado a sua cabeça não é mais do que o normal. Afinal, a História repete-se - la reine est morte, vive la reine. Viva Maria Antonieta.