segunda-feira, junho 27, 2005

Antes do Destino

Antes do Amanhecer, ou do Anoitecer, não somos nada sem o nosso cinema. Cinema que criamos, que nos angustia, que nos faz também viver, e sonhar por mais, em qualquer lugar, aqueles por onde passamos, aqueles que deixamos, e que continuam a existir pela eternidade do tempo (aquela que ambicionamos). No cinema há espaço para o receio, para o cepticismo, mas sem dúvida muito mais para o idealismo, para o romantismo, o que toca cada plano, cada promenor, cada sombra ou cada raio de luz, a que nos projecta e que é projectada. Apenas desejamos ser levados por ela, que nos acorde, que nos ilumine, que traga encanto, magia (projecção), que nos faça ver o que não acreditavamos que alguma vez poderiamos ver. Por essa concretização, por cada detalhe que se junta no filme, enriquecemo-nos humanamente, e dificilmente alguma vez o deixaremos. Porque é por ele que sonhamos, que nos agarra ao que verdadeiramente amamos, que nos transtorna na sua (quase) fatalidade, que modifica e joga com as nossas "moléculas", das quais somos compostos - os sentimentos.
Antes ou depois dele(s), seremos sempre a mesma pessoa, nunca mudaremos, e damo-nos conta da mera passagem que uma vida pode ser. Mas vivemos como que pela necessidade de um preenchimento, de um vazio que somos ou eramos e que queremos deixar de ser. Pelo explosão de romantismo, ou pelo doce transbordar de um desejo inevitável, superior ao destino - o desejo do nosso cinema, para que possa crescer, e que nos mude a nós próprios.
E cada sítio vazio é um local onde nos encontramos, onde nos encontrámos, onde esse desejo nasceu, existiu, e de onde partiu para outros, acompanhando-nos, formando-nos, puxando-nos para voltar, voltar sempre a esse sítio - onde estamos, de onde partimos, onde já ficamos.
O retorno é inevitável, pois o sentimento não morre, muito menos o nosso cinema. É por aí que vivemos, pelo que antes era sonho, mas agora realidade. "Flowing downstream, caught in the current, I'll carry you, you'll carry me, that's how it could be". "Just in time".

terça-feira, junho 21, 2005

A Morte do Cinema

Entre todas as personagens de Sunset Boulevard, custa perceber quem são as reais e as fictícias - Norma Desmond ou Gloria Swanson, Max von Mayerling ou Eric von Stroheim (realizador de Swanson em Queen Kelly, filme projectado dentro do primeiro), Cecil B. De Mille como actor ou como realizador (também de Gloria, em diversos filmes), os estúdios Paramount como cenário ou local de "trabalho", ou outros "símbolos" do cinema mudo, entre os quais Buster Keaton.
De todas elas, parece ser Gloria Swanson, na sua "loucura", a que percebe e a que vive mais o cinema, o do "coração", como ela diz ao seu argumentista, aquele "dos rostos", e não "o das palavras". A sua luta não se resume a uma questão de glória (como no nome) pessoal, mas sim de eterno amor a uma arte - o cinema, o mudo, no seu estado mais puro. Aquele pelo qual um rosto valia duas páginas de diálogos e de confissões emocionais, aquele em que a história não era aquela "que não chegava" para fazer um filme, mas que nos mostrava ele próprio outra, a que se dirige a nós, "as pessoas do escuro", às quais Norma/Gloria dedica o último fabuloso plano do filme, ao se aproximar de nós, no seu último close-up.
E neste filme, a confusão de imaginários é tal, que partimos de uma narração de um morto, de realizações reais (Wilder), semi-reais (DeMille, e o filme que realizava realmente na altura, no seu próprio estúdio), esquecidas e relembradas (von Stroheim), para luzes que iluminam personagens e pessoas, uma avenida real como local de um "crime" fictício (filmado de forma soberba), ou a projecção de um outro filme realizado e exibido dentro do todo que comporta este.
"I didn't know you were planning a comeback". "I hate that word! It's a return..." - tal frase transpira verdade cinéfila, concretizada pela imagem mais viva deste filme, um filme de morte, na confusão de projecções que se reúne magistralmente no rosto de Norma/Gloria (a que surge dentro do próprio filme, e a que passa o filme que vemos dentro na sala).
E da "morte" do mudo, ou do seu embalsamar, tal como o chimpanzé de Norma, enterrado por von Mayerling/von Stroheim (este último também vítima dos estúdios), resta-nos a memória que nunca se apaga, que parece renascer por cada foco de luz, tanto da piscina onde cai o corpo (de uma forma curiosamente arrastada), como das câmaras que filmam cada papel. "Let's have another close-up".

segunda-feira, junho 20, 2005

O Cinéfilo

"La cinéphilie est une maladie, férocement contagieuse, dont on ne se débarrasse que très rarement. Elle peut être l'histoire de quelques saisons, ou l'obsession d'une vie. La cinéphilie - pour qui s'y prend - devient alors un travail à temps plein, qui invalide ou rend difficile toutes les autres (études, emploi, vie familiale). La salle de cinéma est par excellence un lieu où s'effectue un transfert fantasmatique qui se prolonge dans toutes les sphères que décide d'habiter l'individu : maison, appartement, café, rue. Pour le cinéphile, le monde est par essence un reflet amoindri, une copie dégradée de la vie vécue au cinéma, et le cinéma, un substitut de la vie. La vie est toujours là où luit le projecteur : c'est là qu'elle atteint sa plus haute densité, que peuvent culminer des affects inimaginables dans la vie ordinaire. Cette vision représente aujourd'hui ce qu'on appelle un vrai cinéphile" (extracto de texto de André Habib, presente em http://www.horschamp.qc.ca/article.php3?id_article=175).
A cinefilia é isto - o prolongar de um imaginário brilhante e eterno em todos os aspectos da vida comum e provisória. É viver o seu cinema por uma dimensão luminosa, a mesma que ilumina o ecrã na sala, que projecta as imagens, e que nos une fantasmagoricamente enquanto espectadores. É uma humanidade que nos preenche e que nos recoloca num lugar tão verdadeiro quanto mágico. É viver um passar de imagens constante na nossa tela, que nos une a quem vemos, ao que vemos, e à sala de cinema. É uma ilusão de tempo e de movimento, condição essencial para a sua ambição, é reimaginar a vida. Não viver por ela, mas viver a partir dela, em constante projecção. Não apenas um filme da vida, mas algo de uma qualidade muito superior. É a fusão total de imaginários pela imagem e pelo som (sem necessariamente se fazer ouvir), num momento eterno e total. É a vontade de tudo ver e tudo conhecer, de unir a memória a todos os momentos, de passado, presente, e futuro, de constantes citações e alusões. É vermo-nos no nosso ecrã, rodeado de personagens, situações, planos, sequências, ângulos, luz, e agir dessa maneira. Muito mais que um jogo, é uma realidade, uma militância.
De outra forma, é não comer para ir ver dois ou três filmes seguidos, ou não dormir pelo passar constante de imagens. Achar que a vida é importante, mas o cinema muito mais.

sábado, junho 18, 2005

Le Tourbillon de la Vie

Resumir Jules et Jim a um conjunto de características não é das tarefas mais fáceis. Apenas direi que se trata de um dos filmes mais misteriosos e ricos do génio de François Truffaut.
Do que acabou por se tornar numa obra cinematográfica de uma geração e foco de uma paixão cinéfila intensa, parece perdurar no tempo, e até hoje, como algo de extremamente desconcertante, tanto pela sua sinceridade, como pela sua fatalidade. Por um conjunto de características e circunstâncias aparentemente joviais, Jules et Jim impõe-se como dos filmes que mais marcas deixam no cinema e no espectador, este recolocado tanto fora como dentro do trio de personagens, numa experência intensa e marcante de identidade.
Toca-nos, por ela, a busca pela eternidade - a estátua do Adriático, personagens que não envelhecem, Catherine como mulher de todos os homens, Paris e a sua Belle Époque, o tempo que passa apenas como graus de areia numa ampulheta. Como uma música que se toca, mas que ainda não está pronta.
Alors tous deux on est repartis,
Dans le tourbillon de la vie,
On a continué à tourner,
Tous les deux enlacés, tous les deux enlacés.
Giramos, giramos, de amor para amor, de um lugar para outro, de uns braços para outros. Tudo intenso, tudo misterioso, tudo simples, tudo em vida.
E o choque previsível é o da morte - é aqui que a música acaba. Tous les deux enlacés, tous les deux enlacés. Até lá, pela vida, jogamos com ela (esta e a outra), por máscaras ou corridas, a brincar com os seus vestígios.
E como fazê-lo? Dans le tourbillon de la vie. Com um bocadinho de batota - Catherine e a corrida, soberbamente filmada ("Vous avez triché! Oui, mais j'ai gagné"), desencontros (im)previstos, mergulhos ensaiados.
E toda a destruição está presente na câmara de Truffaut, que gira e corre, para além de toda a memória, seguindo o momento. Pelas corridas e passeios, por cada cara de Catherine (sequência fabulosa), até ao soulagement da última cena, no testemunhar do que sobrevive.
Jules et Jim marca-nos pelo que é - a união perfeita de lirismo e movimento, de imagem e de ausência, de memória e reconhecimento, de paixão e morte, e de todos os seus tempos. Uma beleza libertina, clássica e fatal.

sexta-feira, junho 17, 2005

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O cinema e a vida.
A cinefilia.