sexta-feira, outubro 06, 2006



Este blog nunca se publicitou, nunca se preocupou em manter passos, apenas queria viver com o pequeno propósito de acompanhar o dia-a-dia de uma ou certas pessoas. Nunca se assumiu como um blog é agora cientificamente definido, não se rodeou de pares ou blogs parceiros, não se interessava por muitas outras visitas. Agora que esse propósito se fechou, também fecha este blog, mais partilha do imaginário de um cinéfilo, vivendo num cinema que continua e continua. Esse não morre - estará sempre vivo, por vezes mais expansivo, por outras mais interiorizado. A entrada de textos na Saraghina fecha na sua vertente mais constante e regular, e passa a arquivo de textos, ou a acolher um futuro objecto, quem sabe, por outra razão. Resta escrever apenas uma coisa: tudo o que se escreveu aqui, tudo o que se fez sentir, tudo o que faz lembrar ou a quem se queria chegar, e onde encontrarei sempre, está nesta cena, cinema e vida agora eternos.

terça-feira, julho 04, 2006

O Mundo de Malick

Bonito, bonito, bonito. Terrence Malick, o poeta visual, do belo, da essência deste, do cinema como câmara natural da poética, do Homem, e da sua alma, nos seus princípios como Natureza, da sua renovação como existência. Antes disto, nada existia, ou melhor, antes disto, nunca nos tinhamos encontrado. O que somos, uma pergunta central no cinema de Malick, numa imagética proustiana, num encanto whitmaniano. Somos tudo, eu, nós, luz e imagem, até às nossas origens, percorrendo um passado, vislumbrando um futuro que é presente. Nascemos para descobrir(mo-nos) e (a)os outros, aceitar o amor quando nos aparece, aceitar a vida como crescemos nela, encarar a voz que nos acompanha e ouvi-la no conselho e na luz que nos traz. Um Novo Mundo, catarse, renascimento, humanismo ou criação, no melhor da vontade, na mais preenchida das sensações, na mais pura das verdades. Terra, vento, água e carne, um cinema puro, humano, e belo.

quinta-feira, junho 15, 2006

Volver


Volver, voltar sempre ao que está na base da nossa sobrevivência, o que condiciona e dita os nossos actos, as nossas obsessões, os nossos fantasmas - o nosso cinema. Quem ainda vive e quem já morreu, unidos pela memória e pela imagem, sempre no luto, na homenagem, no passado que percorremos, no presente onde lutamos. Almodóvar, como os grandes cineastas, faz um clássico sobre suspensão, elipse, adiamento, do que está sempre presente e percorre cada fotograma. As suas citações confundem-se entre cinema e vida, o que viveu e o que sonhou viver já não se distingue, está tudo na mesma linha, junta-se tudo na mesma imagem, numa sensibilidade que alterna constantemente entre a comédia e o melodrama, o cinema e a pintura, a câmara e um pincel. São fantasmas que nunca o foram, que são cinema e vida, corpo e espírito, sempre por um momento em que se chega ao confronto de tudo o que não foi encarado e se abre definitivamente, para resolver os nossos complexos e limpar os nossos traumas. O cinema apresentado como sempre é para nós no dia-a-dia, transposto magicamente na ilusão das imagens. Com cineastas como Almodóvar, o cinema nunca morrerá. Um cinema da nossa vida, mas também de cinefilia (Penelope/Magnani, Almodóvar/Visconti), de uma cultura (Espanha/Itália), de um modo de vida (do culto da morte, presente como a vida). Um cinema de rostos profundíssimos, de antecipação (da doença antes da doença - Agustina), de cores e cenários, de uma sensibilidade clássica. E Almodóvar é o mais sensível de todos os cineastas. Almodóvar é cinema.

quarta-feira, junho 07, 2006

A Elipse, o Toque


O toque é de Lubitsch, as elipses as de Angel, de 1937. Dois anos antes da guerra estalar, num filme já com contornos políticos, mas derrotados em todos os aspectos pelo cinema, pelo que se esconde em cada um de nós, pelo que nunca nos abandonará, pelo que carregaremos para sempre, pelo que nos define em qualquer e último caso. Mas com uma elipse Marlene Dietrich vence no filme sobre o seu filme, e nos satisfaz com tudo o que vamos adivinhando na subtileza genial de Lubitsch, no que não é preciso dizer para se mostrar, no que não é preciso relatar para se saber. Fica-se pelo cinema como mistério que é, com o que nunca poderemos ver senão por imagens e mais imagens fabricadas nas nossas projecções, por sugestões de passado, presente, e futuro. Um estado de cinema permanente e eterno, alimentado por nós, vivido pelo espectador, por outros rostos, outras salas, outros nomes (qual deles é Maria, qual deles é Anjo, o que será um anjo?). Quem queremos ser e como vemos os outros, como sempre queremos, será sempre a nossa condição, numa ficção sempre imaginária, mas intensamente verdadeira. É por aí que vivemos. E no fim, as decisões que se tornam as mais importantes, são aquelas que passam como passa Marlene pelo plano final, vinda não se sabe ao certo de onde, mas sabendo quem será sempre, e como foi até aí. Não é preciso mostrar mais, nem sequer dizer mais. Uma porta se fecha, outra se abre. E nós como espectadores saímos da mesma forma, sabendo que em momentos somos uns, noutros somos outros, mas o que fica e ficará sempre é esse cinema.

quinta-feira, maio 25, 2006

Marie Antoinette

Maria Antonieta, o último filme de Sofia Coppola, teve a sua estreia mundial esta semana no Festival de Cannes, estando incluído na competição para a Palma de Ouro. Ao que parece, a sua recepção não foi das melhores. Após o final da projecção, houve apupos e assobios no lugar dos aplausos esperados pela crítica francesa, que tinha decidido colocar a já chamada “rainha” do festival nas capas de todas as publicações do país.
Na verdade, tal reacção não espanta. A princesa austríaca e rainha de França, como se sabe, não tem das melhores reputações no país que a acolheu – é ainda acusada por muitos como a principal responsável pela decadência financeira e até política em que o país caiu antes da Revolução de 1789, e descrita como uma estrangeira que chegou ao Palácio de Versalhes para corromper definitivamente uma corte e os seus costumes com sucessivas festas, más companhias, e desleixo moral. O seu fim foi a decapitação, julgamento implacável do povo soberano.
O que Sofia Coppola fez com o seu extraordinário filme, e seguindo a visão nacional francesa, foi exactamente o mesmo. Chegou a França com os seus amigos americanos e instalou-se no Palácio de Versalhes para enchê-lo com visões de riqueza decadente, roupas, bolos, festas, um futuro rei que apesar de sexualmente inapto e politicamente frágil, amava a sua mulher e o seu país, e uma jovem Maria Antonieta amante da natureza, delicada com a sua entourage, e mãe atenta dos seus filhos. O seu instinto maternal, aliás, esbarra no protocolo real, ao afirmar perante a câmara que ama a sua filha da mesma maneira que um rapaz herdeiro do trono, e que deseja amamentar este mesmo do seu peito, e não entregá-lo a uma ama oficial. Vemos uma rainha que chora na sua solidão, que prefere companhias divertidas ao dia a dia cerimonial e repetitivo do palácio, que ama a sua família e a enche de ternura, que partilha leituras de Rosseau com as suas amigas e que se entusiasma com a magia da ópera, não se coibindo de aplaudir os seus músicos e as suas personagens como qualquer espectadora vulgar.
Sofia Coppola consegue tornar um filme centrado numa das personagens mais marcantes da História de França e no seu momento mais importante numa obra visual recheada de beleza e encanto, passando praticamente ao lado da questão política, e desconstruíndo toda a ideia tradicional do chamado “filme histórico”. Os grandes bailes são feitos ao som de New Order, os encontros com amantes são momentos delicados e românticos com música de Adam and the Ants (temos quase pena da rainha ao ver a sua paixão partir), encontramos pares de Converse no meio das dezenas de pares presentes no seu quarto, e temos a realizadora a atirar sucessivamente planos de arranjos de comida, copos e flores aos olhos do espectador a ritmo de videoclip. A própria cena de introdução do filme, memorável ao jeito da de Lost In Translation, é feita com uma Kirsten Dunst semi-nua de penas na cabeça a passar os seus dedos por um bolo majestuoso, ouvindo-se as guitarras cortantes dos Gang Of Four. Aqui, não há Visconti para ninguém.
Sofia Coppola não só desfaz o mito de Maria Antonieta inimiga do povo e destruidora de Estados, como o mito do filme histórico. Pegou na História de França e fez dela sua. E o resultado é simplesmente maravilhoso. Que o povo de Cannes tenha cortado a sua cabeça não é mais do que o normal. Afinal, a História repete-se - la reine est morte, vive la reine. Viva Maria Antonieta.

domingo, abril 30, 2006

Le Mépris

I like gods. I like them very much. I know exactly how they feel - exactly.
Neste fabuloso filme de Godard, (mais) uma reflexão sobre o cinema, entramos no scope e nas cores quentes de verão e de Roma pela própria câmara que nos filma, sentados na sala de cinema. Nunca um filme tinha começado assim.
Um filme sobre cinema, para além de toda a sua História e das suas referências, espalhadas pelas panorâmicas ou por frases e citações, é sobretudo um filme sobre sentimentos. Os nossos, os do cinema, os que ele nos faz sentir - amor, ternura, angústia ou desprezo. O desprezo natural e quase vegetal de Camille pelo seu marido (que se vende à vida como conforto financeiro), que vive como imagem, desmontada pelos planos do seu "traseiro", das suas "coxas", das suas "pernas", dos seus "seios", e que respira numa tranquilidade de deusa, dona de gestos e olhares, mas que vive insegura na sua vontade e no seu caminho. Brigitte Bardot, BB, como as estátuas gregas divinas pela imagem, cor e som, que relembram as suas histórias, e as tornam de novo possíveis na longuíssima profundidade de campo de todo um mar, no silêncio perfeito que esse exige.
De novo, a vida e o cinema, que morre e que continua, ambos tragédia, ambos inevitáveis. Godard e os seus instrumentos, remete para nós, filmados sobre a sua perspectiva, a sobrevivência desse imaginário, sempre questionado e enriquecido, pela agitação de cortes sucessivos, ou pela naturalidade de uma sequência que brinca com o real.
BB é BB (e também Anna Karina), Lang é Lang e cinema, a Cinnecittà palco de sonhos, mas abandonado. Il faut revenir au cinéma de Griffith et de Chaplin, diz Paul, antes de se render à máxima da sala de projecção, onde morrem películas, deitadas ao chão pelo produtor - "il cinema è un'arte senza futuro".
Mas o que sobrevive continua a ser o que fica por mostrar, depois do silêncio, depois da morte, depois do desprezo, o que fica por filmar, onde o espectador ficará por entrar (se é que não se entrou já, irremediavelmente para sempre). No mundo que, como Godard repete pela frase de Bazin, satisfaz todos os nossos desejos.

segunda-feira, abril 24, 2006

Le(s) Fantôme(s)

Ao entrar pela colecção permanente da Cinemateca Francesa, regressamos ao nosso estado mítico, à aparência dos nossos fantasmas, de outros disfarces, lembramo-nos de novo que tudo o que somos, tudo por onde passamos e em tudo o que a sua realidade e memória se assentam resume-se a uma simples palavra - cinema.
Desde as lanternas mágicas, pequenos rodopios de imagens fantasiadas, cartas que correm perante os nossos olhos e seguras por uma manivela, fatos e máscaras para mostrar quem queremos ser, ou ilusões bem antigas e imaginativas de diletantes e outros fantasistas, vemos que o cinema sempre existiu nas nossas mentes, sempre nos definiu e sempre nos acompanhou, na nossa condição perdida, na nossa ambição imortal. Os deslocados da vida não estavam perdidos - queriam-se perder.
Os cinéfilos, dizia Truffaut, são "pessoas doentes" - todos os que gastaram tudo o que tinham para invenções de outro mundo, para construções nunca antes vistas, que deram todo o tempo ao seu verdadeiro tempo. Foram os que se recusaram a tomar a vida como adquirida, e preferiram ir ao fundo das imagens que os rodeavam, que os formavam, nunca as recusando, mas sim pegando nelas, com todas as suas consequências, e recriar outras, tal como mágicos que sabiam o que poderiam ser, para finalmente poderem ver tudo.
Homens como Méliès e as suas viagens inacreditáveis para lá do mundo, para furar a vista da Lua que dormia sobre a Terra, as suas construções imensas para albergar todo um sonho (o seu estúdio enorme e transparente), uns irmãos chamados Lumière que espalhavam pânico pelas suas salas com comboios que vinham para atropelar espectadores, e o primeiro cinéfilo, que mais do que salvar o cinema como ele existia, queria salvar a sua vida e as de muitos outros - Henri Langlois.
Milhares de películas foram ou salvas ou reencontradas por esse jovem rapaz, que comprou e subornou toda a gente para evitar que obras-primas do cinema se tornassem em fumo. Quando chegou às milhares de cópias, ou mesmo antes, criou a instituição que não era instituição - a Cinemateca Francesa. Aqui, os doentes rencontravam-se uns aos outros, noutros actores, noutras histórias, sempre sobre a ilusão e a projecção de uma máquina que desfilava as suas paixões, as suas aventuras, os seus segredos, os seus traumas. Por uma vez, o cinema era toda a gente, tal como deveria sempre ter sido.
Outros cinéfilos cresceram sob estas imagens, levaram tudo o que eram para os ecrãs e passaram de cineastas mentais para estatutos de admiração e criadores. Também eles nos ensinaram o que era o cinema e, afinal, o que era a vida, ou o que poderia ser a vida, tal como que sempre desconfiavamos.
E quando Malraux tentou negar a Langlois o direito natural de passar todos os filmes de todo o mundo (escreve um cinéfilo), estava a querer matar todos esses doentes, todos esses apaixonados - assim se vêem, de forma impressionante, os telegramas expostos de tantos nomes a proibírem exibições naquela sala das suas obras (Welles, Chaplin, Buñuel, Minelli, Kubrick, Truffaut, Godard, entre muitos outros). Mas o cinema venceu.
O que devemos a Langlois não é o facto de o cinema existir - esse está presente e bem vivo em cada um de nós. Devemos o facto de o cinema ser visto, de saber que, afinal, não somos apenas o que guardamos, mas podemos ser tudo o que desejamos. Por uma série de imagens, um movimento, ou um plano da vida. Fantasmas como nos vemos, cinema como sonhamos.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

O Céu em Berlim

Numa cidade dividida, centro de uma História que não se esquece, como se vive, e como se vive com o seu cinema? O retrato de Asas do Desejo, de Wim Wenders, é o único possível - na rejeição do que é físico, da violência dos corpos, do confronto que existe entre cada transeunte que passa na rua, procura-se a verdade de cada um, sempre escondida, através de seres puros, que planam em espírito e que têm ouvidos para todos, anjos doces e serenos, trocando histórias também eles, de contos pequenos e anedotas, notas engraçadas de ocorrências da vida.
Num país traumatizado, numa cidade de habitantes perdidos, cada um no recanto do seu pensamento, colocam-se todas as questões depois da catástrofe - por que estamos aqui, o que andamos a fazer, e como lidamos com isso? Antes ainda de saber viver o presente, como lidar com o passado, o cinema que não se pode abandonar? São histórias eternas, poemas e angústias que sobrevoam o filme, ultrapassam-se como diálogos com o espectador e a sua condição mais íntima, o peso que esta comporta, e que anjos desejam também viver.
A única visão apresentável é a que se vê - do céu, do mais puro e espiritual, uma nova ordem de vivência, que marca a tal distância, que nos consegue afinal todos unir num tempo sem tempo, numa paz sem conflito, sem guerra, lidando suavemente com o que passou e com o que ainda não caíu ("schön", belo, assim se mostra o Muro que quebra a cidade).
Assim, como regressar por fim à vida, saber que estamos sozinhos, mas lidar com a nossa condição, saber gerir o que era vazio e agora vida, o que era triste e agora bonito, tanto para cada um, como para um país inteiro? Dois seres separados, agora unidos, ambos solitários, por fim crescendo e unidos, num abraço de conforto, num beijo de paixão - como um "ex-anjo", e uma (sempre) bailarina ou trapezista, que nunca cai, e quer voar para mais, sempre mais alto, sempre em paz. Como o final deste filme, e de tantos outros, também citados pelo seu autor (Yasujiro, François, Andrej... cineastas da vida) - pelo amor. Assim seremos sempre quem somos, na resolução do que mais vivo existe em nós, através do cinema, dos nossos mistérios, para o mais concreto, as nossas necessidades, o que nos faz viver ainda no dia-a-dia.
Tudo isto e muito mais é o céu em Berlim. Outros anjos ficaram e não caíram, mas um dia hão de descer, puxando-nos para a vida e mexendo com o nosso cinema. Do céu, para a terra, com paz e amor.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

L'Imagination au pouvoir



Paris é cinema.

São planos infinitos que se vêem pela cidade fora, em cada recanto, em cada promenor, ou em cada panorâmica. Portas, prédios, lojas, ruas, árvores, boulevards, jardins, tudo o que é paisagem, todos os bairros, o rio, as roupas e os casacos, o amor, os bonjours e bonne soirées.
Naturalmente, um artista como Truffaut, cineasta da vida, apenas poderia ter crescido nesta cidade – dias inteiros passados em cineclubes e salas de cinema, cafés recheados de posters de filmes e de estrelas míticas (que nunca morrem), entradas ainda com as fotografias velhinhas de exibição, fichas e pequenos textos com as informações básicas para qualquer cinéfilo, e tudo o que de resto se pode imaginar.
E aí entramos nos filmes. Em Paris, cada bairro tem as suas autênticas cinematecas, salas exclusivamente dedicadas a reposições de filmes de outros tempos, de outros mundos, para onde nos podemos transportar e esconder. Não admira que Truffaut tomasse esse rumo. São homenagens constantes, ciclos eternos dedicados ao que se pensava que já não se poderia ver, tanto em horários para quem vive de dia, como para quem vive de noite. Tudo isto para se viver no cinema.
O cinema aqui não se esquece. Vive, e vive-se, com antecipação, a expectativa cinéfila, a discussão antes e depois do filme, também encaminhada para cafés, esses outros cenários, dans les rues de Paris. Naturalmente, daqui teria que germinar qualquer coisa, explosões de imaginação para agitar a vida previsível, noutros anos, noutro mês de Maio.
E ao sair das salas, temos a névoa de Inverno, que nos mostra que o sonho, nesta cidade, vive também cá fora. Ainda podemos caminhar até casa imersos no nosso novo cinema, que se torna tão ligado ao de Paris. E nunca esquecer...
Que je dégradasse les murs de la classe...

sábado, dezembro 31, 2005

King Kong

Hollywood, os Óscares, e tudo o que vem atrás disso, é algo que todos os anos, sobretudo por este continente, se costuma criticar, ou mesmo ridicularizar, de vez em quando com argumentos interessantes, muitas vezes sem qualquer ponta de razão. Tal como os Estados Unidos são um grande país, a sua cultura é fascinante, e aí mesmo encontramos esse nome, representativo de tantos anos de cinema, histórias fabulosas, sonhos e aventuras.
Nestes últimos anos, é uma constante falar-se da "crise da indústria" - já não existem espectadores, quanto mais cinéfilos, os filmes vêem-se por números, as pessoas parecem desligar-se da magia do cinema, as histórias são banais, as estrelas sem talento. Hollywood perdeu o charme, e entregou-se à mediocridade de um ambiente "reality TV" - actores que são cantores, vindos de programas de televisão-pacote, clichés banais, um cinema sem cultura.
Alguns destes pontos são, de facto, verdade. Basta ver o domínio total de filmes americanos no circuito comercial português, olhar para eles, e perceber a sua (falta de) qualidade. São exactamente isso - filmes que se olham, e não mais, como televisão. No entanto, para quem conhece bem o cinema americano, as suas raízes, as suas histórias, o seu modo de funcionar, apercebe-se também que a sua indústria funciona talvez da mesma maneira do que há décadas atrás, com o mesmo sensacionalismo, com os mesmos filmes ligeiros ou fracotes, apenas de forma adaptada à evolução inevitável do tempo. E com tantos filmes produzidos por ano, alguns serão inevitavelmente bons - nem todos podem passar daqui a muitos anos nas cinematecas. Mas King Kong de Peter Jackson terá certamente lugar cativo em qualquer arquivo.
Curiosamente, este "rejuvenescimento" teve lugar na Nova Zelândia, país natal desse realizador. Mas tudo o que se vê é Hollywood, em todos os seus melhores aspectos. E daí só poderia sair um filme fantástico - Hollywood em todo o seu empenho e inteligência, renovando cenários e efeitos (uma Nova Iorque dos anos trinta impressionantemente reconstruída, uma autêntica homenagem à cidade) que mesmo digitais (para quem me perceba) são sem dúvida dos mais extraordinários já vistos em cinema, Hollywood em constante auto-citação (jogos temporais com nomes de actores, frases, locais, estúdios, até gritos - cinema e vida em agitação permanente), em constante trabalho, risco, entrelinhas (as que Jack quer que Ann veja) e magia.
Este filme, tal como o cinema, e sobretudo o americano, é mágico. Não só pelas já ditas imagens inacreditáveis, não como efeitos de jogo de vídeo, mas sim dotadas de forte carga psicológica, como também pela sua construção notável, a sua maravilhosa banda sonora (algo tão hollywoodesco e belo), a importância do som na sua essência, e não como palavra (passam-se minutos e minutos sem intromissões de pontas de diálogo irritante, desnecessário, numa clara rendição à imagem, essência do cinema), a gestão quase perfeita da emoção e da coragem (pecando talvez apenas em exageros pontuais de uma ou outra personagem secundária), e sobretudo, pelas duas maiores cenas de acção que o cinema já viu, passadas na Skull Island, entre uma corrida inacreditável de uma série de brontossauros, e uma luta absolutamente impressionante entre King Kong e um número de Tiranossauros, que tentam atacar a sua amada. Não há palavras para descrever.
E palavras é o que o cinema não precisa, tal como Kong, e todas as sequências centrais do filme, aparentemente dividido em três - uma introdução e apresentação de personagens, um capítulo inteiramente reservado à acção (e que acção!) na ilha misteriosa, e uma última parte, passada de novo em Nova Iorque, onde brilha o final em que a Beleza se junta ao Monstro, minutos e minutos de novo sem palavras, só imagem, só cinema.
Volta Hollywood, estás perdoada.