terça-feira, outubro 18, 2005

Last Days

Last Days é um filme de um dos cineastas norte-americanos mais importantes da actualidade (o que ainda se pode chamar verdadeiramente "cinema de autor" hoje em dia) num autêntico ponto de mestria técnica. A própria obra tem sido vista como um ponto final na trilogia da "morte juvenil", também testemunhada no minimalista mas belíssimo Gerry, e em Elephant, vencedor da Palma de Ouro de Cannes. Os pontos comuns entre as três fitas são reconhecíveis, mas cada um adquire a sua beleza própria - e Last Days não é excepção.
No que poderia facilmente ser um filme em crescendo emocional até ao seu momento fatal, com grandes momentos de agressividade ou choque físico e verbal, acaba por ser uma reflexão, em todo o seu sentido interior, dos últimos dias de alguém em solidão absoluta e total, à procura de uma certa catarse, que o limpe ou o liberte (como pergunta certa personagem a dada altura), de tudo o que se teria conhecido, dito, ou até tocado. Aliás, as últimas músicas da vida de Barry são momentos fantásticos de preenchimento sonoro, e da sua própria desconstrução (sons que se vão confundindo, cordas partidas, berros que se ultrapassam...), testemunhadas por movimentos de câmara perfeitos.
O que se prolonga pelo tempo é um ser em contacto com os elementos mais puros da natureza, em rejeição do mundo exterior, e dos que o habitam, que se auto-flagelam no prazer físico, tóxico, e imundo, ao som de Venus in Furs. A intimidade ou ilusão física dá lugar a uma série de deambulações por caminhos e mais caminhos, desconhecidos e descobertos, por Barry e pelo próprio espectador em simultâneo, em planos unicamente característicos de Van Sant, tanto na fabulosa luz do dia claro, como na noite enevoada, orquestrada por odes musicais inesperadas, ou estranhas frases murmuradas para não se sabe quem.
E o fim de Barry torna-se angelical, num dos planos mais bonitos de todo o filme - o que tem alma, no seu momento mais lúcido, a libertar-se do corpo, como um anjo a caminho do céu, uma imagem digna do mais belo Renascentismo, uma imagem divina de Miguel Ângelo.
A própria beleza de todo o movimento e montagem de Van Sant estende-se ao som, recheado de barulhos longínquos, comuns, mas também como que aleatórios e bizarros, assim que outros promenores, coros, sinos, ou memórias sonoras, em substituição de uma música ou de outros diálogos.
Last Days é, assim, todo um momento, uma proximidade constante de morte, refúgio, solidão, pureza, nos últimos dias de vida de alguém que ninguém conhecia, nem conhecia ninguém. Uma fantástica obra de arte.

4 comentários:

Duarte Valente disse...

Com tanta atenção ao filme em si enganas-te no nome do personagem principal que é Blake e não Barry. De resto, concordo com o que disseste no teu texto embora tenha pena que não tenhas referido que o filme é inspirado nos últimos dias da vida de Kurt Cobain, isto porque há muitas cenas que remetem para o estilo do próprio nomeadamente na maneira como se veste, na música que toca (grunge não é?), e nas palavras que escreve no diário.
Bem, um abraço.

Francisco Valente disse...

Pelo facto de ter escrito Barry em vez de Blake, peço as minhas desculpas. Foi um lapso, para o qual prometo muita auto-análise...

Bernardo Eça disse...

elepahnt é um exelentissimo filme para curar insonias

Mariana disse...

De um ponto de vista menos familiar com o trabalho, o estilo e a técnica de Van Sant,"Last Days" desarma totalmente por essa mesmas características, por apresentar cenas cruas, no sentido em que não contêm floreados e romanceados bonitos. É outro tipo de beleza que apenas depois do choque é assimilada... ainda bem que há quem consiga falar claramente sobre o filme e pôr em palavras as impressões e sensações que causa o choque do confronto com a obra, que a sua beleza profunda baralha e confunde. O facto de não conseguirmos falar sobre uma obra de arte porque esta nos desarmou desta maneira é muitas vezes confundido com uma antipatia pela mesma, quando o que se passa é que fomos realmente tocados muito fundo - e isso incomoda, até que alguém exprime o que não nos sai.