segunda-feira, outubro 17, 2005

Uma imagem de Alice

Mais que sobre um desaparecimento, Alice de Marco Martins é um retrato - de uma cidade anónima e dos seus arredores sem detalhes, de uma rotina eterna e obsessiva, de uma ausência, que parece prevalecer sobre qualquer outra emoção, ou raramente dá lugar a outra expressão que aquela carregada por Nuno Lopes ao longo de quase todo o filme. Ao colocar-se perante uma outra câmara de filmar, que não uma das suas, e ao ver-se em todos os televisores colocados à sua frente, este, e nós, deparamo-nos com a verdadeira realidade deste filme - uma (série de) imagem(ns) plana(s), desprovida(s) de sentido vivo, totalmente ausente(s).
A própria ideia de intimidade é ou rejeitada ou ignorada ao longo de toda esta obra. São imagens que não se vêem de um casal, imagens reais que não se vêem de uma filha, são festas, beijos, e afectos negados a todo um círculo de pessoas, em todos os seus momentos. Prevalece aqui a obsessão imaginária de uma condição, ou função em falta, o pai, que puxa por si, por uma imagem, e rejeita (fisicamente) a condição física, a mãe, até às suas últimas consequências.
E perante uma "ameaça" de reencontro físico com a sua filha, o pai (ou a imagem de um pai), não se precipita e corre atrás dela, não berra, não se agita. Apenas a segue, lentamente, tal como um outro frame qualquer da sua colecção de gravações (sempre as mesmas, outro indício de repetição), como se surgisse agora o medo de quebrar o seu "sistema", ou melhor, o seu ritmo e valor (vazio) de imagem.
A filha Alice e, de novo, a (sua) ausência, está em cada plano da cidade, em cada (raro) desvio de olhar, em cada nota (repetida) que se ouve ao longo de um tempo, nunca tão cíclico.
O que fica no final, inteligentemente, e que nos acaba por comover certeiramente, é a esperança, no único momento de todo o filme em que surge alguém a reparar nesse pai em falta. E daí se guarda o que faz viver a sua personagem, caminhando em frente.

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